Lia – Capítulo 61

Elas sempre passavam na frente da casa de Lia. As duas sempre juntas, andando pelo meio da rua tranquila, nunca pela calçada. Mãe e filha. Dona Eulália e a Lalinha. Mesmo corte de cabelo, mesmo desenho de corpo, embora a Lalinha fosse mais pesada a essas alturas. Dona Eulália parecia um graveto.

Era ela que cortava o cabelo das duas. A menina, na verdade, nunca saía de casa, a não ser para esses passeios de manhã e fim de tarde. Todo santo dia. Chuva ou sol. Geada, vento ou nuvem.

A menina, quando a Lia nasceu, já passava dos quarenta. Ficando grisalha.
Dona Eulália seguia uma trajetória mais reta, quase pelo meio da rua.

Olhando reto em frente, sem nunca acompanhar com movimentos da cabeça os passos mais erráticos da filha, mas sempre muito consciente de onde ela estava.

A Lalinha, enquanto isso, ia de uma calçada para outra, olhava bem de perto o tronco das árvores, remexia a terra solta, por vezes sentava no meio-fio enquanto a mãe seguia com seu passo tranquilo, inabalável. Mesmo quando a filha gritava coisas inarticuladas. Mesmo quando a menina vinha até a mãe e a puxava pelo braço, murmurando coisas sem sentido que aparentemente queriam fazer com que ela fosse ver as árvores, a terra, meio-fio.

Dona Eulália seguia em frente. Sem olhar de frente para a filha. Boca sempre revirada num sorriso pelo avesso. Imperturbável. Inatingível. Meio morta.

Sua única alteração de postura era afagar a mão da Lalinha quando ela voltava e lhe dava o braço.

A mãe da Lia dizia que a Lalinha nasceu normal. Bonita, até. Gordinha. Mas que uma vez teve uma febre alta, que numa cerrta noite virou uma coisa de dar medo. E a dona Eulália ficou sentada do lado do berço, o tempo todo trocando panos molhados na testa da filha.

Mas no meio da madrugada, naquela que não era a primeira noite de pouco sono com a doença inxeplicável da filha, cansada de cuidar de tudo sozinha, sem nem comer direito há dias, exausta, fragilizada, desesperançada, dona Eulália caiu no sono. Ali mesmo. Na cadeira de madeira. No meio da noite.
Acordou com o sol no rosto, a filha estendida inerte no berço, com um fio de baba caindo da boca.

Lia passou horas, passou dias da sua vida olhando pela janela nos mesmos horários.

Lia sempre se considerou irmã mais velha de dona Eulália.

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