Os vivos e os mortos – principalmente os mortos

“Ter um filho é ver nascer a pessoa que irá organizar o seu funeral”, escreveu o jornalista e escritor Christopher Hitchens em sua imponente autobiografia, Hitch-22. Não precisou de muito tempo pra demonstrar a coisa na prática. Durante a turnê literária de suas memórias, em 2010, foi diagnosticado com um câncer de esôfago. Pouco mais de um ano e meio depois, estava morto.

Seu livro derradeiro, Últimas Palavras, é curtinho, mas poderoso. Uma coletânea dos artigos que publicou na revista norte-americana Vanity Fair enquanto enfrentava o tratamento. A mente de articulista afiado, conferencista duro e debatedor inabalável – em suma, um homem desafiador e irritante – não embotou. A obra é um pequeno manual de como encarar a morte com altivez, mesmo nos dias em que a quimioterapia te subjuga com diarreias incontroláveis e em que a radiação te frita de dentro pra fora.

Mesmo no fim, continuou debatendo com religiosos e respondendo àqueles que consideravam sua doença uma punição divina por ter blasfemado contra o Senhor. Ao que parece, não ocorria a nenhum deles que um câncer de esôfago era uma consequência bastante previsível para alguém que passara a vida fumando como uma chaminé e bebendo como um gambá, e mesmo assim manteve uma capacidade de trabalho prodigiosa (o segredo ele levou para o túmulo).

Foi no último livro de Hitchens que descobri uma extraordinária anedota envolvendo Voltaire. Importunado em seu leito de morte para renunciar ao Diabo, o grande filósofo e ensaísta teria zombado, murmurando que aquela não era uma boa hora para fazer inimigos.

Minha experiência com a morte até aqui, nos 32 anos em que vivo neste vale de lágrimas, me mostra que materialistas convictos lidam muito melhor com o fim, apesar de saberem que serão simplesmente riscados do mapa. Para os religiosos, em algum lugar e de algum modo, ainda haverá um jogo a ser jogado. Isso deveria lhes dar mais sangue-frio, mas paradoxalmente não é o que acontece – o que sempre me faz perguntar se as pessoas acreditam mesmo nas ladainhas em que dizem acreditar.

Há mais ou menos duas semanas, perdi uma pessoa importante. Alguém de quem fui muito próximo por muito tempo, mas de quem acabei me afastando. Por quê? Porque sou como todo mundo, e é isso que nós fazemos: corremos para longe e depois voltamos arrependidos quando é muito tarde para qualquer coisa. E então juntamos nossas lembranças e nossas culpas, colocamos tudo nas costas e nos pomos novamente a correr, tentando não ruminar muito aquilo.

Era em Christopher Hitchens que eu pensava enquanto via minha mãe, geralmente uma mulher enérgica, se mostrar frágil, abalada, alquebrada, reunida com os irmãos, tomando as decisões práticas para o velório e o enterro de sua mãe. “Ter um filho é ver nascer a pessoa que irá organizar o seu funeral.”

Minha hora também chegará.

Minha avó não morreu de Covid-19. Morreu de velhice, de outras doenças renitentes, e também de desistência, porque ninguém é obrigado a lutar até o final, além de suas próprias forças.

Quinze dias depois, acho que sou capaz de escrever algumas palavras sem soar terrivelmente piegas. Ela era emotiva e talvez preferisse alguma coisa mais açucarada, mas acho que entenderia que esse não é o meu estilo. Celebre para fora, sofra para dentro, e jamais beba com o Twitter aberto durante um momento difícil, porque isso pode colocar a estratégia a perder.

De dona Geni, eu lembrarei de muitas coisas. Por anos e anos, fomos vizinhos, e até entrar na universidade eu com certeza convivi mais com ela do que com meu próprio pai, que era caminhoneiro, e portanto precisava estar sempre metido em algum cafundó distante para que eu pudesse comer.

Lembrarei, principalmente, de todas as vezes em que ela me protegeu e pareceu compreender aquele neto desengonçado, fracote, sem jeito diante do mundo, uma criança que conseguia ao mesmo tempo ser ensimesmada e terrivelmente encrenqueira, com poucos amigos e que com frequência dava um jeito de chegar da escola com um pouco de sangue na roupa.

No dia em que ela finalmente se deu conta de que minha vinda para Curitiba não seria temporária, mas uma mudança definitiva, chorou tanto que eu pensei que nunca mais fosse parar. Por fim, entendeu. Sempre tinha acreditado muito em mim. Infelizmente, nunca pode acompanhar nada do que fiz. Ela nunca aprendeu a ler.

Na sexta-feira passada, eu estava recolhido no que acreditava ser uma inexpugnável fortaleza de cinismo – a única maneira de acompanhar o noticiário deste país – quando um amigo me mandou um link por WhatsApp. Àquela altura, o Brasil tinha oficialmente 83.121 mortos por coronavírus. O link mostrava o que aconteceria se todos esses mortos fossem meus vizinhos, estivessem em torno do meu endereço, na região norte da cidade. A resposta: os cadáveres ocupariam uma área com quase três quilômetros de raio.

Tomei um tranco. Imaginei 83.121 donas Genis, quietas, pálidas, deitadas, geladas. E 83.121 filhos, 83.121 versões de minha mãe, frágeis, doentes de tristeza, precisando ficar distantes, querendo cumprir sua missão de organizar funerais, mas nem sequer isso podendo fazer.

Mesmo assim, estou certo de que elas não deixam de juntar suas lembranças meio assombradas, à noite, no escuro.    

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