Procrastinação

Modéstia à parte, o bife à parmegiana ficou de pedir bis. É bem verdade que o queijo colonial deu um tchans ao prato, mas tenho pra mim que o segredo sempre está no molho – e, desta vez, parece que acertei a mão na consistência e na dose do manjericão. (Cuida-te, Maneko’s!). Com essa jogatina de confetes sobre mim mesmo, é escusado dizer que tivemos, ontem, um baita jantar, senhoras e senhores. O cardápio incluiu, ainda, batatas fritas e vinhos chilenos (desses de promoção, mesmo, a dezenove pilas a garrafa). O caso é que fui à cozinha, agora há pouco, e a louça continua entulhando a pia de forma ostensiva, enquanto o fogão parece ter chafurdado em óleo de canola. Parmegianas, batatas fritas e vinhos propiciam noites incríveis, principalmente nessas épocas de tempo carrancudo. Na mesma proporção, entretanto, nos legam um rastro sem fim de afazeres, que, invariavelmente, fazem com que, no dia seguinte, eu me pergunte: por que diabos eu não pedi uma pizza?

Está bem. Eu sei. A essa altura, qualquer dono-de-casa responsável já deveria ter areado as panelas, lavado os pratos, lustrado as taças e deixado o fogão brilhando, mas tive contratempos no caminho. Primeiro, foi o violão, que jazia no canto da sala. Você há de concordar que não há coisa mais triste que um instrumento em estado de abandono, reivindicando atenção. Há quanto tempo eu não bulia com ele? Uma semana, quiçá. Foi imperativo acomodá-lo sobre as pernas cruzadas e fazer ecoar um acorde, a fim de constatar que o coitado carecia de afinação. Acertados esses detalhes técnicos, passeei por Belchior (“Coragem Selvagem”), Caetano (“Reconvexo”) e Chico (“Hino da Repressão”), até terminar em Legião (“Quase Sem Querer”). Pobres vizinhos! Quando fui ver, já tinha se passado quase meia-hora.

Ato contínuo, até fui à cozinha e cheguei a lavar dois copos e uma taça, mas o telefone tocou. Deus é testemunha. Na volta, dei com a pilha de livros que serve de suporte à luminária do meu quarto. E os livros, como se sabe, existem para isso mesmo: para que tropecemos neles e tenhamos ganas de lê-los. Entre os que estavam ali, fiquei entre folhear Vida de Escritor (do Talese) e Febeapá (o Festival de Besteiras que Assola o País, do Ponte Preta). Venceu este último, por soar muito atual. Li três ou quatro das crônicas e fechei o livro, ponderando que, se ainda estivesse vivo, Sérgio Porto (o jornalista que escrevia também sob o pseudônimo de Stalislaw Ponte Preta) teria, com folga, farto subsídio para mais uma ou duas edições do Febeapá. O que não faltam neste governo são frutas como laranjas e groselhas.

No caminho da cozinha, percebi que o vaso de espada-de-são-jorge e de arruda manifestava sede. Quando fui dar de beber às plantinhas, o gato do vizinho do bloco à frente passou a arrastar meu olhar feito ímã (desculpe-me, Caetano, pelo furto). O bichano atirava-se à tela afixada na janela, tentando escalá-la, provavelmente para caçar algum inseto. Neste instante, contudo, no apartamento logo abaixo, apareceu o menino João Mateus (sei do nome porque ouço seus amiguinhos chamá-lo, amiúde) e passamos a proceder como de costume: trocar acenos e caretas, até que ele faça arma com as mãos e dispare um tiro imaginário, que vai me atingir o peito, fazendo com que eu saia de cena e feche as cortinas. (Será que aquele pequeno infeliz simpatiza com o Bolsonaro?).

De volta à pia, houve tempo hábil para que eu lavasse uma panela e dois pratos. É que chegava a hora das videocassetadas na tevê, que tenho por tradição acompanhar impreterivelmente (sim, estou escrevendo no domingo). Não que eu goste, necessariamente, de me refestelar vendo desastres domésticos alheios. É que meu pai – que mora na minha cidade natal – desata às gargalhadas a cada tombo, a cada acidente. De minha parte, conforta-me assistir este quadro, porque, mesmo à distância, sei que naquele instante ele estará rindo escancaradamente. Pode parecer estúpido, mas sei lá, é quase uma forma de eu me manter conectado com o velho. Ademais, é alentador saber que de quem a gente gosta está bem, ainda que por um motivo banal.

Enquanto me lê, talvez você tenha pensado: “Mas que pusilânime! Ele está procrastinando descaradamente!”. Ok, eu reconheço: estou procrastinando. Mas só assumo publicamente porque dei de pensar, agora mesmo, sobre a origem da coisa – não da minha procrastinação, mas da expressão, em si. Recorri ao oráculo digital, que crava que vem do latim: pro – “à frente”; cras – “para o dia seguinte”. É quase literal. “Deixar para o dia seguinte”. Assim, é certo que quem procrastina está arranjando um problema. Não estou conjecturando desta vez, é a etimologia quem atesta: problema deriva do grego probállein, que quer dizer “atirar para frente”. Não tem jeito, senhoras e senhores. De nada adianta adiar o estorvo, se, cedo ou tarde, terei que lidar com ele. Vou voltar à cozinha, de onde não sairei até que tudo esteja reluzindo à limpeza. (Ou não).

Para ir além

Vida de Escritor, Gay Talese, Companhia das Letras, 512 págs.

Febeapá – Festival de Besteiras Que Assola o País, Stanislaw Ponte Preta. Companhia das Letras, 488 págs.

Leia mais crônicas de Felippe Aníbal

https://www.plural.jor.br/o-mendigo-pos-eleitoral/

https://www.plural.jor.br/macaco-nao/

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima