Chernobyl

“Dia 4 de maio. No nono dia depois do acidente, Gorbatchóv apareceu, certamente foi covardia. Era uma confusão. Como nos primeiros dias da guerra, em 1941. Nos jornais, condenavam-se as artimanhas do inimigo e a histeria dos ocidentais. Falava-se das manobras antissoviéticas e dos rumores provocativos que os inimigos semeavam entre nós por trás das colinas.”

“Imediatamente ressuscitou o antigo léxico stalinista: ‘agentes dos serviços secretos ocidentais’, ‘inimigos jurados do socialismo’, ‘complôs de espiões’, ‘operações de desestabilização’, ‘golpe pelas costas’, ‘socavar a união indestrutível dos povos soviéticos’. Todo mundo não parava de falar em espiões e terroristas infiltrados; por outro lado, nem uma palavra sobre medidas profiláticas à base de iodo. Toda informação não oficial era interpretada como ataque da ideologia inimiga.”

Os dois trechos acima estão em Vozes de Tchernóbil, o livro-reportagem da vencedora do prêmio Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch sobre o maior desastre nuclear da história, na Ucrânia, em abril de 1986. Impossível não lembrar dos angustiantes relatos e depoimentos colhidos pela jornalista enquanto assisti aos três primeiros episódios de Chernobyl, a medonha e claustrofóbica minissérie em cinco capítulos da HBO que também retrata a catástrofe.

Historicamente fiel, a obra tem eventuais concessões aqui e ali para destravar a narrativa. No roteiro, a fala concisa de um dirigente durante uma reunião da cúpula do Partido Comunista para avaliar o acidente sintetiza a ideia que permeia toda a obra de Svetlana, a de um regime que abandonou seu povo no escuro e à própria sorte quando ele não tinha nenhuma condição de se defender. Diz ele:

“Quando o povo faz perguntas que não são do melhor interesse do povo, apenas devemos dizer a todos que se concentrem no trabalho. E deixem os assuntos de Estado para o Estado”.

E o que o Estado soviético fez nos primeiros dias após a explosão na usina nuclear de Chernobyl foi ignorar professores e cientistas, enquanto permitia deliberadamente que seu povo fosse envenenado por radiação, na tentativa tosca de esconder uma calamidade e de não piorar a imagem internacional do comunismo.

O acidente em Chernobyl foi uma daquelas não raras ocasiões na história em que o desprezo do homem pelo homem nos faz adquirir a consciência de que a ruína final da humanidade não pode estar tão longe assim. A trajetória é uma linha reta, e corremos por ela a galope.

Se a União Soviética carrega a ferida histórica de negligenciar o maior desastre nuclear já visto, o Brasil também pode ostentar o seu galardão às avessas nessa mesma modalidade: o acidente radiológico com césio-137, em setembro de 1987, em Goiânia, foi maior já registrado fora de uma instalação nuclear em todo o mundo. Dois catadores de sucata encontraram um aparelho de raio-x em uma clínica privada abandonada e, a partir daí, a sequência de decisões estúpidas tomadas por diferentes personagens, fazendo a contaminação se espalhar, poderia compor o roteiro de uma sinistra comédia de erros. As autoridades de saúde precisaram de 15 dias para desconfiar que as pessoas que procuravam atendimento com diarreia, vômito e náuseas não eram vítimas de uma mera infecção alimentar. A cápsula radioativa ficou por dias jogada sobre uma cadeira em uma unidade de saúde. E por pouco um bombeiro impaciente não a pegou e atirou césio-137 dentro de um rio.

O Estado brasileiro também tentou minimizar os efeitos do acidente e esconder as possíveis consequências da população. E naquela época, quando muito recentemente havíamos saído de uma ditadura militar de 21 anos, talvez nem mesmo Carlos Bolsonaro tivesse a cara de pau de nos acusar de comunistas. Inicialmente, em público, os governantes trataram o acontecimento como um mero “vazamento de gás”. Naqueles mesmos dias, Goiânia sediava o Grande Prêmio Internacional de Motovelocidade, e radioatividade não pega bem com turistas.

Mesmo quem foi exposto ao césio-137 por trabalhar no processo de descontaminação precisou ir à Justiça para arrancar uma pensão do Estado que até hoje, mais de 30 anos depois, pode não ser suficiente para comprar os medicamentos de que precisam para tratar as doenças arranjadas por conta da radiação.

Nunca deixa de impressionar a crueldade que o aparato estatal tende a adquirir quando não constantemente vigiado por seu povo. E não vai aqui nenhuma proposta para solapar a máquina pública. Um Estado dissimulado e grandes corporações diferem pouco quando o assunto é sanha homicida – tanto faz se deliberadamente ou por negligência, não é usual que cadáveres façam a distinção. É quase como se fosse uma tradição.

Ou, como diria um dos personagens de Svetlana Aleksiévitch: “Se ficarmos saciados e desaprendermos a sofrer, quem nos achará interessantes?”.

Para ir além

Vozes de Tchernóbil, Svetlana Aleksiévitch, Companhia das Letras, 384 págs.

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