Isolamento social dia 163

Querido diário: ir ao mercado nunca teve tanto a sensação de roleta russa. Como se tivesse um sujeito na porta do estabelecimento com cara de mafioso, um terno bordô, um pedaço de tatuagem aparecendo no pescoço. Você chega, ele te olha e diz:

-Bem-vindo, Andrei. Nome russo, hein? “TAK”, neste espaço fechado há muitas possibilidades de infecção. Caso você encontre uma delas, você não vai ver, porque vírus… São invisíveis!!

O mafioso russo em seu terno bordô ri muito da minha cara, antes de me desejar um sinistro “boa sorte” em russo – que eu acho que foi boa sorte, não entendo nada de russo.

Ao fazer as compras, o álcool gel coça no bolso, como se falasse comigo:

– Me passa!
– Ainda não, acabei de entrar no mercado.
– Mas você pegou no carrinho.
– Tinha uma mulher só limpando os carrinhos.
– Será que ela limpou direito? Será que o pessoal do mercado diluiu o álcool dela pra render? Será que…

E lá vou eu passar o álcool gel. Essa conversa se repete infinitamente ao longo das compras. A cada lata. A cada saquinho.

Saindo do mercado, me deparo com esse casal. Pego o celular – que vou ter que passar álcool 70% em casa antes de voltar a tocá-lo – e tiro a foto.

E aí que começa o conflito do registro, querido diário.

Meu primeiro intuito era falar sobre como é o amor, blá-blá-blá, mas surpreender você, leitor, falando sobre a tendência suicida do casal do grupo de risco. Será que eles não viram o mafioso russo na porta do mercado? Será que são negacionistas? Será que são teimosos, como são teimosos os pais/avós de todos nós?

Só que eles são um casal. Cruza pela minha cabeça de que talvez eles não tenham ninguém pra fazer o mercado pra eles. Talvez, nesses tempos sombrios, eles possam ter medo de ficar longe um do outro porque se a roleta russa pegar um, como o outro fica?

Meu intuito com a foto era fazer graça, meme, sarro, álcool gel falando no bolso, personagens ultra caracterizados como um russo com paletó bordô na porta de um mercado curitibano. Mas hoje, dia 26 de agosto de 2020, esse casal tem quase 117.000 exemplos de que essa roleta russa realmente pode levar quem a gente ama.

Sei que parece incongruente para quem vê comédia com preconceito, querido diário, mas a vontade de fazer humor pode levar a gente a querer refletir sobre o objeto da graça em si.

Desisto da ideia do meme, mas decido compartilhar com você, querido diário, o que se passou pela minha cabeça. Assim, quem sabe, eu consigo me entender um pouco melhor. Agora você me dá licença porque o álcool gel tá me chamando.

PS – Você acha estranho que eu converse com o álcool gel? Mas quando eu converso com você, querido diário, você acha de boas?  

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