Lia – Capítulo 84

Está escuro. Difícil saber que horas são, no entanto. Pode ser o começo ou o fim da noite. Pode ser alta madrugada. Talvez, pelo pouco azulado que se reflete na parede branca, em torno do interruptor que será o foco de toda esta história, talvez estejamos longe de um dos extremos. Talvez.

O interruptor, como se pode deduzir do que foi dito acima, está “desligado”. A lâmpada conectada a ele, dentro de sua cúpula esverdeada lá no teto, bem no centro da sala, está fria. Na ponta da ogiva de opalina que a protege acumula-se um pouco de pó, partes de corpos de insetos mortos há tempos. Na ponta da ogiva verde que aponta o centro da sala.

Se acesa, a lâmpada projetaria sua luz amarela filtrada de verde por todo o cômodo, à exceção desse pequeno ponto bem no meio do tapete onde o pó e os cadáveres gerariam uma sombra. Minúscula.

Não há mais ninguém em casa. Lia tem certeza. Ou devia ter.

No entanto o olhar no rosto dela, que agora aponta enquadrado pela porta do corredor, parece intrigado. Curioso. E não pouco amedrontado. Lia está tensa.

Fica um momento parada à porta. Como que sem ousar pisar na própria sala. Olhos bem abertos, enxergando no entanto tão menos que nós. Pupilas se alargando a cada segundo. Ouvidos em alerta, apoiada ao batente da porta, mão esquerda cerrada firme ao lado do corpo. Como quem quisesse ter ali alguma coisa, alguma arma. Alguma coisa. Qualquer.

Camisola branca leve. Curta. Pés descalços.

Boca tensa em risco fino. Mandíbula travada. Dentes contra dentes. Pressão.

Não se ouve nada.

Nada.

Nem carros. Um gato que ao longe uiva quase humano. Só.

Vez por outra um caibro ou viga que estala, se acomoda. Nada que assuste. Nada que gere receio. A casa é velha. Lia a conhece de há muito. Talvez por isso esteja estranhando essa vaga sensação de invasão. Como se a casa lhe dissesse que algo está errado. Alguém?

Ela pisa o tapete. Com extremo cuidado.

Grudada à parede caminha tateante, mão esquerda estendida à frente, espalmada, palmilhando os centímetros de argamassa que separam a porta do botão do interruptor, enquanto as pernas se deslocam lentamente, passo a passo, calcanhar e dedos, suavemente, sem fazer qualquer ruído nas tábuas do piso antigo (Lia pesa um quase nada). Mão direita agora erguida, ainda fechada. Olhos imensos, tensos, redondos e vivos. Respiração acelerada mas contida, curta. O começo de um ricto agressivo nos lábios.
Não tem ninguém aqui.

É a sala. É só a sala.

Nenhum barulho. Escuro, escuro, escuro, tão escuro. Ela não lembra de saber que sua casa podia ficar tão escura.

Três, dois centímetros separam o dedo mais longo da mão estendida do espelho cinzento do interruptor de um só botão. Ligado à lâmpada gelada que vela agora pelos corpos dos insetos dentro de sua ogiva cor de menta. Dois, um centímetro. A essa altura são os dedos que caminham pela superfície vertical, bem mais que mão, bem mais que o corpo. Tudo que ela precisa é tocar o botão e poder finalmente enxergar. Poder tirar do peito essa sensação estranha e sem qualquer motivação. Não tem ninguém aqui. Você está completamente sozinha nessa casa escura.

Completamente sozinha.

Completamente.

Só.

E então como que num salto final, cobrindo a pouca distância que faltasse, dois dedos vão diretos para o interruptor. Luz. Salvação.

E quando tentam encontrar a tecla tocam outra mão.

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