Maquinismo

5° andar

Parada em frente ao prédio, dona Ana segura uma sacola. Não gosta de pegar o elevador sozinha, fica olhando o movimento da rua até alguém chegar. Eu a cumprimento e, como de outras vezes, ela me segue. Coloco a máscara; dona Ana mantém a sua inutilmente pendurada no pescoço.

Abro a porta do elevador, dou-lhe a vez. Aperto a tecla do nono andar. Ela ergue a mãozinha em forma de gancho e aperta o quinto. O velho maquinismo sobe devagar, estremece, estala. Dona Ana me olha, às vezes, como se tivesse uma vaga lembrança de mim ou de alguém que supõe que eu seja. Num gesto confuso, puxa a máscara sobre o rosto, mas deixa o nariz de fora. Os bicos de seus sapatos, sob as barras da calça mole que roçam o chão, estão ligeiramente descascados. Vejo no espelho suas costas recurvas, os braços afastados do corpo como asas enrijecidas, de pássaro exausto. Dizem que vive com as janelas e as persianas cerradas. Será por causa do Covid? Ou já ficava assim antes, indiferente ao que se passa lá fora, numa sombra perpétua?

Suas bochechas magras descem formando um V suave; os lábios são severos mas delicadamente intumescidos. Nos olhos azuis, aquosos, nadam medos fugidios. Posso entrever, sob a trama fina das rugas, a jovem bonita que ela foi. Imagino-a há sessenta, setenta anos atrás, andando por Lisboa entre homens de gravata, no ardor contido de uma adolescência que aquele mundo conservador destinaria ao casamento. Pois ali estão, no ressequido anular da mão esquerda, as duas alianças: a dela e a do morto…

Chegamos ao quinto andar.

Ao abrir-lhe a porta aproveito para sair do elevador. Ela passa por mim, me olha; vai falar algo, mas desiste ou esquece o que pensou dizer. Some devagar na penumbra do corredor, até que seus cabelos brancos pareçam flutuar, sem corpo.

7º andar

Seguro o puxador de alumínio e me surpreendo com a garota dentro da luz azulada. Ao me ver, ela abandona o ar de enfado adolescente, ergue o celular, digita algo. Entro no elevador, largo no chão o saco de roupas sujas que levarei à lavanderia. Ajeito a máscara sobre o nariz. Ela aperta o botão de número sete, eu o T.

Por que veio ao último andar, onde só vivemos Rute e eu? Certamente esqueceu de definir seu destino lá em baixo, e o elevador obedeceu ao meu comando. Talvez, inconscientemente, não quisesse chegar em casa; talvez achasse que já tinha feito aquilo que faz todos os dias, no automatismo do tédio. Seus cabelos castanhos foram cortados à pressa em duas paralelas bem definidas: a da franja, que vai até as têmporas, e a das extremidades, um pouco acima dos ombros. A camiseta larga e a calça frouxa no ventre, os tênis meio sujos, tudo nela parece recusar a sensualidade que o corpo apura.

Chegamos ao seu andar. Ela sai. Enquanto a porta se fecha lentamente, ouço uma voz abafada de mulher, censurando-a. Ela volta rápido, segura a porta no último instante.

– Desculpa, diz, embaraçada. Entra de novo no elevador.

Descemos. A garota, imóvel, parece a criança abismada quando começa a sentir-se real.

Lá fora, vou para um lado, ela para o outro. Depois de uns dez passos, me viro: a garota está sentada numa mureta. Olha o asfalto; o celular pende das mãos como inútil vara de pescar.

Térreo

Chamo o elevador da esquerda. O da direita está com a porta escancarada, presa por uma grande caixa metálica. Só se vê o fosso, os cabos de aço e a cabeça de seu Horácio. Há meses ele conserta obstinado o equipamento. Desmonta-o, tira dali vigas de ferro, comandos elétricos, roldanas, placas enferrujadas. É um homem de meia-idade, baixinho e resignado. Tento entender como mantém seu macacão sempre tão limpo.

Sob a luz histérica da lâmpada incandescente que pendurou em algum lugar, ele volta os olhos cansados para mim. Mas me ignora, abaixa-se e some no fosso.

Pego o elevador da esquerda. De costas para o espelho, sinto o suor escorrer sob a máscara.

As pessoas aqui não gostam muito de falar. Evitam-se. Melhor assim. Em vez de me exporem seus dramas repetitivos, impregnados de dissimulada violência, meus semelhantes se limitam a deixar pecinhas soltas para a imaginação alheia.

Eu as recolho, examino uma por uma. Como seu Horácio, tento interminavelmente integrar as partes de um obscuro maquinismo.

A caixa rangente para no quinto andar. É dona Ana. Por que está subindo?

Ela segura a porta, me encara e, dolorida, sorri, como se parisse um filho imaginário.

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