Pequenas narrativas sobre o luto

#2

Em sobressalto, ergo os olhos — há quanto tempo fitavam o piso de granito preto? — . Escuto o guincho frio das rodas do carinho de transporte contra o chão da capela mortuária. Os rolamentos lamentam sob o peso que precisam suportar: um choro que se torna cada vez mais alto, mais próximo. A porta corrediça range quando o agente funerário move as molas. Em um movimento simples a madeira clara é revelada — o padrão dos entalhes envernizados me lembra o movimento do mar. Acho que faz jus à sua lembrança. Aqui dentro também são ondas. E o silêncio.

Os agentes movem-se rápidos – quando manejam a tampa do seu leito, já não consigo conter as lágrimas. Os pulmões são incapazes de sorver o ar. O meneio da cabeça de algum dos seus parentes, provavelmente um tio distante, sugere que eu me aproxime. Mas levantar do piso de granito me parece uma tarefa árdua. Preciso de alguns minutos — esses segundos aglutinados em que, entre uma respiração funda e outra, tento convencer-me de qualquer coisa.

São apenas alguns metros, mas me parece preciso a fúria do ímpeto para vencer a distância. Cada passo é uma pequena violência contra mim mesma. Não há força, só o furor dessas agressões menores: é o que me mantém em pé ali, ao lado do teu corpo. É o frenesi daquela promessa que eu te fiz debaixo do céu que despencava, naquela tempestade em pleno novembro. Eu sou teu par — uma simetria que exige a divisibilidade por dois. Agora é só esse vácuo perfeito, e os pulmões incapazes de sorver o ar.

#54

Meus pés parecem queimar dentro da sapatilha plástica. Latejam. Talvez seja pelo sol que pegam – já passa das seis da tarde, e a luz arde com o horário de verão. Talvez tenha sido a caminhada de dez minutos até a estação tubo. O fato é que acabo de terminar o livro que carrego comigo – um feito que procurei evitar nos últimos 54 dias.

Não que a história narrada por Elena Ferrante não seja envolvente – pelo contrário. O receio de encarar o segundo volume da série italiana era, na verdade, proveniente da presença de um conteúdo para além da literatura. Ao virar a capa, logo na primeira página do conjunto de folhas impressas, lia-se, abaixo do título impresso, algumas linhas deitadas às pressas. Registrada em tinta preta, a grafia inclinada e esguia começava com o meu nome. Já me peguei atendendo ao chamado daquele aposto diversas vezes, recordando as circunstâncias daquela escrita.

Era a primeira vez que íamos ao cinema, por óbvio, ambos decidimos perambular por entre as estantes da livraria antes do início da sessão. A sugestão de presente foi espontânea, como se seu gesto fosse o mais evidente de todos: “Escolha um livro”. Àquela altura, eu não sabia que receberia mais do que as palavras da autora selecionada – mais tarde, tudo me pareceu um plano muito bem esquematizado na sua cabeça: me permitir a escolha minutos antes do início do filme, de forma que, abandonando lhe à uma solitária espera na fila do caixa, você estaria livre da minha curiosidade para deixar aquela marca de tinta ali. Uma surpresa com a qual me deleitei já em casa, longe do seu olhar bondoso. Era como se você soubesse o tempo todo, dos tons de gratidão e apreço às escolhas de palavras – um recado que só mais adiante eu seria capaz de ler. Uma impressão que ficaria gravada para além do papel.

Pela janela do transporte público a vida segue, os prédios passam, os transeuntes circulam. Entendo que o movimento é inevitável, imprescindível: não há outra forma, eventualmente, todas as coisas (se em)caminham.

 

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