O que fica

O ano é 2016. O carro da Uber chega. O seu Nelson é o motorista da vez. Dentro do Sandero Stepway o clima é de praia. Ele traja chinelos e bermuda e me conta de quando morou no litoral. Os olhos cor de mel são de uma simpatia que só vendo, e fazem par com as rugas do rosto e a pele avermelhada pelo Sol.

É só mais uma agradável corrida de aplicativo. Talvez movido pela série de lembranças suscitadas pela conversa, talvez apenas uma forma de dar continuidade à conversa, o seu Nelson me conta que logo depois de me deixar no meu destino precisa ir ao hospital. Pergunto o que aconteceu: “A polícia atirou no meu filho”. A frase não tem rancor, não tem tristeza, mas carrega um cansaço que já presenciei em outras vozes. Ariel, de 27 anos, foi baleado durante um churrasco com os amigos no Passaúna. O tiro, nas costas, custou um rim e perfurou os dois intestinos. A polícia alega que o jovem apontou uma arma de madeira para os oficiais e chegou a enviar agentes ao hospital, para guardarem o rapaz.

“Foi você que foi assaltada no Passaúna?”, questiona o motorista do ligeirinho, agora em uma manhã de março de 2019. Ergo os olhos e, em um sopro, seu Nelson e Ariel me vem à mente. O outro funcionário da companhia, também dentro do ônibus emenda: “Imagine, tanta linha pra assaltar e assaltam o Passaúna!”. A conversa prossegue desavisadamente e discutem o prejuízo deixado à cobradora da história em questão.

Logo atrás, duas pré-adolescentes dividem o mesmo fone de ouvido. Sacodem os ombros no ritmo da música, que vaza do aparelho e chega aos meus ouvidos. Fazem selfies enquanto os cobradores e motoristas discutem a violência nas linhas, outras. Constato que meus cachos ruivos me mantiveram anônima na composição de fundo do retrato. Um amontoado de cabelo sem rosto.

Ao alcançar o próximo ponto de parada, os grupos se dissolvem: resta apenas o motorista, calado; e uma das moças, sem a amiga. A jovem saca o celular, um movimento quase automático. Revive o momento anterior: revisita a foto tirada no assento do ônibus, durante a conversa do motorista. Ainda penso em seu Nelson, no Passaúna. Ela seleciona o próprio rosto – conforme o dedo desliza para a direita, e para a esquerda, ao longo da barra de ajustes, vejo o queixo ficando mais largo, depois mais fino. Por fim, opta pelo padrão: fino e alongado. Eu nunca fui ao Passaúna. Penso nos padrões, nos comportamentos. Às vezes, também queria uma barra de ajuste para mudar as coisas.

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