Cismas de uma peça que não vi

Encontramos dois lugares ao canto, mas logo na primeira fila da arquibancada, o que soava como uma lufada de sorte. Àquela altura – era quase sete da noite de sábado passado –, as Ruínas de São Francisco estavam tão lotadas, que dezenas (ou centenas) de pessoas se viram obrigadas a se sentar ao chão, entre o palco improvisado e os primeiros degraus, ou a se aglomerar às laterais do anfiteatro, de onde não deviam ter boa visão das cenas. Apesar do tempo sisudo – e não estou, agora, fazendo metáfora política –, era naquele espaço que a Sem Cia. de Teatro apresentaria A Mulher Monstro.
Você deve ter lido aqui neste Plural: a peça havia perdido palco depois que o alcaide resolveu vetar o Memorial para montagens do Festival de Curitiba. Entre as trupes despejadas, a Sem Cia. de Teatro alegou censura. Segundo se anunciava, o texto de A Mulher Monstro consistia em uma colagem de declarações de politiquentos que estão por aí (taoquei?!) e sua claque (os tais “minions”). Como alternativa, a companhia levou a apresentação às ruas e, comprovada ou não, a propalada tentativa de “cala-boca” acabou chamando mais atenção para o espetáculo, que levou todo aquele povaréu todo às Ruínas.
Antes do começo da apresentação, o ator se esforçava para parecer blasé, talvez como forma de aplacar o nervosismo. Em um discurso rápido, apontou dois brutamontes que lhe serviam de segurança, pelos quais tinha que se fazer acompanhar depois que recebeu ameaças em decorrência de A Mulher Monstro. Em tom de quem se expõe a contragosto, disse que essa repercussão e a consequente perseguição lhe atiçaram síndrome do pânico e, por isso, pedia que nós, da plateia, não fizéssemos movimentos bruscos – como se do público pudessem brotar trogloditas, como os que espancaram os atores de Roda Viva, em 1968. (E, ante a sandice contemporânea, quem há de duvidar que pode, mesmo, ocorrer uma dessas?).
O chuvisco insistente que caía dava a A Mulher Monstro um tom quase soturno. Conforme o protagonista ia nos atirando frases que temos ouvido a esmo, sobrevinham típicos risos de quem assiste a uma tragicomédia. “Todo mundo tem direito a vida, mas bandido bom é bandido morto”. “Direitos humanos para humanos direitos! Por isso, eu sou a favor da pena morte, porque… porque… tá na Bíblia! A árvore que não dá bons frutos tem que ser cortada pela raiz”. Soava como uma caricatura desses últimos anos. Por isso, apesar dos fiapos de risadas, havia um certo embaraço, como quem reconhece naquelas frases um tio, uma prima, um amigo de infância, um colega de trabalho… e sente a gravidade da conjuntura.
O incômodo parecia aumentar à medida que os pingos engrossavam. Surgiram capas e guarda-chuvas, como mostras de que o público estava decidido a não arredar pé. Ao nosso lado, a senhorinha de cabelos brancos abriu uma sombrinha, que, solidária, compartilhou conosco. A tempestade, no entanto, desatou, colocando fim na apresentação que mal havia começado (uns quinze minutos, se tanto). Antes de tomar um Uber pra casa, escondemo-nos sob uma das barracas da feirinha do Largo, enquanto A Mulher Monstro continuava a ressoar dentro de nós.
Já em casa, a tevê mostrava o depoimento emocionado do humorista Carlos Alberto de Nóbrega, que falava sério. Contou alguns episódios ocorridos na ditadura militar (aquela, que o revisionismo quer suprimir da História), como uma passagem em que um censor vetou uma citação de Castro Alves, (1847-1871) em um dos scripts assinados por seu pai. Ao ser informado de que o verso a ser extirpado era da lavra do poeta baiano, o militar teria reagido assim: “Ah, então fala com ele, que eu não o conheço. Pede pra ele cortar, seu Nóbrega”.
Como se sabe, não foi possível negociar a emenda – já que Castro Alves viveu e morreu no século 19. Carlos Alberto continuou: “Eu tenho netos, tenho dois filhos jovens. Eu tenho muito medo que essa juventude passe o que nós passamos. Eu estou até tremendo, só de falar eu fico nervoso. Viva a liberdade, gente!”. É como se a fala embargada de Nóbrega se fundisse ao pouco que vimos de A Mulher Monstro, qual um endossasse o outro.
Como em uma espécie de continuação, na manhã seguinte, a Folha estampava na manchete os resultados da pesquisa Datafolha: Bolsonaro tem a pior avaliação entre presidentes em primeiro mandato. A manifestação do capitão sobre a matéria veio, é claro, pelo Twitter e com a profundidade máxima que se pode esperar do mandatário: “kkkkkkkk”, postou. Enquanto ponderava sobre isso tudo, ainda tirando remela dos olhos e bebericando uma xícara de café, um burburinho invadiu o apartamento. Era o outro lado da moeda: alguns milhares marchavam em direção à sede da PF, onde Lula está preso há um ano. Independentemente de como você vê, nunca haverá apenas uma via.
Veio-me à cabeça a célebre passagem em que o jornalista e compositor Antônio Maria (1921-1964) teve os dedos das duas mãos quebrados por capangas de seus opositores, que queriam tirá-lo de serviço. “Idiotas! Eu não escrevo com as mãos!”, redarguiu o escriba. O exemplo me soou atual. Apesar do cheiro de chumbo, ainda podemos nos reunir, andar de braços dados, pensar. É aquela história, os cães ladram, mas a caravana passa. De quebra, ainda dá até pra gritar o óbvio ululante: “O rei está nu!”.

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