De que servem as flores

Rita cultivava rosas na Rua Professor Fernando Moreira. As rosas sempre me pareceram uma espécie de convite de entrada. Quem cultiva um jardim como aquele, de certo tem alguma coisa pra dar, um pouquinho de amor pelas coisas do mundo. 

Minha amiga era uma aristocrata por natureza. Vendeu sua floricultura no São Francisco quando completou cinquenta anos, e desde então vivia da renda de dois imóveis, um deles locado para mim. Um apartamento setentista com sacadas imensas na Prudente de Moraes, que Rita me fez pela metade do preço, menos por compaixão que por consciência de classe. 

“Artista é foda”.  –  Ela me disse.

E sabendo do estado da arte, foi fazer arquitetura ao invés de escultura, ainda que de nada lhe tivesse valido o diploma. Rita gostava de flores. Eu gostava de escrever, e a invejava pela coerência estética própria de uma vida tão em seu lugar. Talvez a desejasse como minha avó, porque eu mesma gostaria de envelhecer à sua imagem e semelhança. Um mundo imaginário que me cabia tão bem.

Ela colecionava vinis e tinha todos os álbuns do Tom Jobim dispostos em ordem. Havia, contudo, uma única música capaz de levantá-la da cadeira em estado de desequilíbrio:

De que servem as flores que nascem / 

Pelos caminhos /

Se o meu caminho /

Sozinho é nada /

É nada.

“Inútil Paisagem” era o rompante da Bossa Nova que era a vida da Rita, que além de tudo era carioca, elegante e decadente, tal qual sua aristocracia de berço: Santa Teresa, Laranjeiras, Cosme Velho. 

A solidão cantada pela Elis doía nos recantos mais escondidos, ali onde a terra era dura e nada brotava. Nenhum botão, uma camélia, nada.

É que a Rita cultivava rosas como gesto de devoção à beleza e à solitude. A calmaria das manhãs em belas xícaras de cerâmica, a tranquilidade possível de uma vida sem grandes preocupações. Era artista sem sê-lo. Não levantava bandeiras pois não precisava de editais. Sua militância era discreta, mais em atos que em alvoroço. Não negociava sua dignidade com as imobiliárias e nem se rendia à especulação. Já no fim da vida, não acumulava mais do que precisava de fato. 

Na falta do desnecessário residia sua elegância, e no entanto, Rita cultivava rosas, o mais inútil dos adornos.

De que te servem as rosas, Rita?

De coisa nenhuma, e você, por que é que escreve?

Para espantar o diabo.

Pois então.

Minha amiga teve dois namorados, um deles músico, do qual engravidou depois de uma paixão incendiária de três meses. João nasceu e a Rita sentiu na dor dos calcanhares a solidão materna. 

Ele tocava, viajava esse Brasil inteiro. Uma temporada de dois meses na Argentina e eu fiquei sem dormir por dois anos. Te digo menina, se for músico, mande à merda.

João morreu aos dois anos de uma meningite aguda, desenvolvida ao mesmo tempo em que ela caiu de cama com lúpus e dez quilos a menos, em um processo de separação que lhe exauriu até os ossos.

Casou de novo cinco anos depois, em maio de 1972. 

Nessa época do ano, me disse a Rita, tudo arrefece. Cessa a paixão, o carnaval, a quarta-feira de cinzas. Já seria possível algum recomeço, e por isso fez ritos em uma igreja pequena, escondida no alto da Estrada das Paineiras. Chamou quinze convidados e vestiu-se do vestido mais simples, carregando nas mãos uma única rosa amarela. 

Mas se você nem acredita em Deus, por quê na igreja?

Pra renovar os votos com a vida, eu acho.

Era um grande amor, Rita?

Não. Só amor o bastante. Amor é bem mais pragmático do que a gente pensa. Grande amor é uma imagem que desaparece sem rastro. Você acha que é profundo, mas é a coisa mais ordinária que existe. Não há nada que resista sem estrutura, menina. Aliás, você tá em dia com o INSS?

– Não.

E pelos cinquenta anos que nos separavam, achava que Rita tinha muito a me contar sobre a vida não tão extraordinária, mas boa o bastante de se viver. Lhe narrava meus amores meteóricos, para que minha amiga lhes colocasse na devida proporção.

Covardia contemporânea, Rita. Me disse que tinha sido lindo e aí desaparece. Não fez jura nem dívida, não sou agiota, mas então não me desse a palavra. Um não já tá valendo, melhor que o silêncio, não acha?

– Já não se fazem mais antigamentes como antigamente. Vivi algo parecido, mas carregando um bebê no colo. Acho que isso tudo, não é pra tanto.

– Mas é que aí eu sinto que as palavras não chegam no chão, sabe? Fico aqui me desperdiçando.

– E você escreve para quê mesmo?

– Para que as coisas que me invadem escapem pelo dedo.

– O carnaval é uma invasão sem memória, só deixa fuligem. 

– Que diabo. E como é que se escolhem os amores então?

– Escolhendo. Escolhendo o possível,  nada demais.

– Isso não rende nenhum escrito.

– É que amor é um substantivo que se converte em verbo. 

Uma ação.

É como criança, precisa de muito carinho. As rosas também são assim e todo dia eu converso com elas.

O que você diz?

– Que a chuva atrasou, mas já está a caminho.

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