As voltas do Cabo Horn

Alejandro Pascual foi um navegador chileno, um dos bons, e também contador de histórias. Com ele aprendi muito sobre geografia. Seus diários eram os melhores livros que poderia ter lido na infância, pois além de conversar com o vento, Alejandro também era meu pai.

Antes de cada viagem, ele fazia uma listagem infinita das coisas que carregaria ao longo de meses, mesmo sabendo que, para navegar bem, não basta o melhor equipamento de orientação, ter destreza com as cordas ou o último barco. Para navegar bem, é preciso entender de continente.

Em seu diário, acompanhei todas as falhas tentativas de atravessar o Cabo Horn na Terra do Fogo. Foram seis invernos frustrados de circundar o ponto mais ao sul da América do Sul. No alto dos seus vinte e oito anos, ele já havia cruzado quase todos os pontos Austrais: Cabo Branco, Leeuwin e Boa Esperança. Sua frustração maior era não conseguir navegar aquilo que lhe parecia mais próximo, e ao mesmo tempo, tão mais distante.

Não se vê o céu, o vento toma forma de nuvem e ganha cor branca de tão espesso que fica ao se misturar com a chuva e a neve, enquanto o balanço do mar faz chacoalhar tudo o que está na cabine. O estômago parece que acompanha o movimento. Não sei qual a perícia necessária para cruzar o Horn, mas sei que é um ponto sem volta. Talvez seja aquilo mesmo que me falte.

Seus diários são meu maior tesouro. Só muitos anos depois fui entender que ele havia criado uma epopéia mítica para si mesmo, e por isso mesmo havia sido um herói lendário da minha infância. Uma ausência tão grande capaz de dar contorno e pavimentar meus descaminhos.

Passei muitos anos lendo e relendo histórias de navegação e me encantava com o fato de que o Cabo das Tormentas, uma vez atravessado, havia ganhado outro nome: Cabo da Boa Esperança, o ponto crucial onde muitos morreram para ver o que havia do outro lado, o marco fronteiriço fantasioso que dividiu o Índico do Atlântico, que criou a ficção do Oriente e a realidade da expurgação colonial. Sempre achei que mapas e livros de história fossem ótimos exercícios imaginários.

A falta dos homens também inventou monstros gigantes. Adamastor se erguia do fundo do mar para afundar as caravelas portuguesas e fazer ondas enormes com suas profecias:

“Que o menor mal de todos seja a morte”. Nisso é preciso concordar com o gigante. A morte é sempre menos estrondosa que o morrer.

Seus diários são meu maior tesouro. Só muitos anos depois fui entender que ele havia criado uma epopéia mítica para si mesmo, e por isso mesmo havia sido um herói lendário da minha infância. Uma ausência tão grande capaz de dar contorno e pavimentar meus descaminhos.

Bartolomeu Dias, o homem que cruzou o Cabo das Tormentas e venceu Adamastor, morreu um ano depois no mesmo lugar que o havia consagrado como rei dos sete mares, a provar que depois da chegada, ainda é caminho, ao contrário do que meu pai Alejandro pensava sobre os marcos sem volta, que garantiriam o triunfo absoluto sobre as águas do extremo sul.

Foi o Pessoa que disse que para passar além do bojador, é preciso ir além da dor. Aquele que circunda o perigo dos Cabos perde algo. Perde o sonho ao se aproximar da chegada que também é o fim; perde, no pior dos casos, com a própria vida. Uma oferenda às criaturas marinhas e ao esquecimento. Morrer no mar é uma ode à grandeza.

Quanto a mim, optei por monstros mais reais. Mergulhei junto das Baleias Jubarte do Atlântico e as assisti penduradas no sonho. Uma baleia dorme durante apenas sete minutos. Metade do seu corpo fica desperto enquanto a outra parte repousa na vertical, como se sustentada pela bondade do anzol de Deus.

Por vezes me pergunto qual teria sido o destino de Alejandro se não estivesse às voltas com a obsessão do Horn. O último e único Cabo que lhe escapou, que se tornou tão grande ao ponto de abatê-lo minúsculo em um enorme rochedo da ilha.

Em 2017 estive na Terra do Fogo. No caminho Farol, vi uma placa feita de madeira rústica pintada à mão que dizia “Por debajo de los 40 grados de latitud, no hay ley. Menos de 50 no hay Dios”. Hesitei dois passos, mas não duvidei. É sempre bom acreditar no que diz o ceticismo dos homens.

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