Uma odisseia natalina

Após onze meses e vinte e três dias de um ano que parecia acabar nunca, veio o natal. O natal, que geralmente é uma comemoração alegre, animadora e otimista. O natal, que representa união e valorização daquilo que realmente importa, cheio de música, luzes e lindas decorações. Ah, o natal costumava ser o dia mais esperado do ano. Até agora.

Ninguém da família Ferreira estava animado com a expectativa do natal.

Após um ano de crises, tanto econômicas quanto sanitárias, a última coisa que aqueles indivíduos queriam eram sentar em uma mesa com familiares que eles não viam há tempos, fingir se importar com assuntos mundanos e ouvir comentários políticos absurdos. E este ano o natal seria ainda pior. Alguns membros se mudaram, outros faleceram, o entusiasmo claramente não estava o mesmo, mas a fachada da necessidade de comemorar uma figura religiosa que nenhum deles realmente dedicava tempo para pensar sobre ainda estava ali. Os primos já estavam velhos o suficiente para não ganharem presentes, mas não o suficiente para terem suas próprias famílias ou um outro lugar para ir. Fora a prima que estava morando na Noruega que ninguém aguentava mais ouvir sobre, é claro.  Toda conversa com ela parecia um ato pomposo de desprezo e condescendência. Sempre soava algo como:

“Nossa, no Brasil as pessoas andam? A Noruega está tão avançada… aqui nós flutuamos para todos os lugares com uma tecnologia sustentável que emite menos CO2 do que andar.” Ou “estou chocada que vocês comem tanta carne, aqui nossa dieta não inclui nada que produz sombra”. Não importava se você tinha um doutorado, um emprego novo ou sobrevivido a um câncer. Você nunca chegaria aos pés da prima que mora na Noruega, e todos os tios faziam questão de te lembrar disso.

Os tios, enquanto isso, viviam em constante competitividade. Se a família Ferreira fosse a selva, os membros mais velhos seriam como leões e os tios seriam hienas, se alimentando da carcaça e esvaziando os bolsos dos patriarcas até sobrarem ossos limpos. Tudo isso enquanto vestiam sorrisos brancos estampados no rosto, é claro.

Exceto tio Augusto. Tio Augusto era um coala de oitenta anos que dormia o dia inteiro e não falava uma palavra durante as reuniões de família. E vó Judite, sua irmã e a matriarca que não ouvia muito, mas poderia ser campeã olímpica de revirar os olhos e fazer caretas, sendo mais transparente que plástico filme.

“Ah, família”, começou Roberto, que estava sendo o anfitrião da vez. Eles estavam na mesa de jantar de um apartamento em Ipanema com 186 m², uma herança da família de Roberto, casado com Ângela, a tia mais velha e mãe de Felipe, que tinha dezessete. A sala tinha piso branco de granito, quadros enormes por toda parte, e duas mesas: a comprida e retangular, com os adultos, e a redonda ao lado, para as crianças. O casal Fernanda e Rodrigo chegaram de carro, por morarem a dois bairros de distância e quererem mostrar o transporte que ganhava mais carinho do que o filho mais velho, Pedro, que ouviu música o caminho inteiro, invejando o irmão que estava na praia. Sílvia, que já estava em sua segunda taça de vinho branco, foi de táxi, pois além de ser péssima motorista, este não era o maior motivo por qual sua família não a deixava dirigir. Cristóvão tinha uma mancha de mostarda em sua camisa social favorita, um presente dado por um de seus quatro filhos durante a viagem de carro de São Paulo até o Rio. Sua mulher Rosane, tentava achar algo que a filha adolescente quisesse comer, enquanto os meninos se estapeavam no canto da mesa e a bebê rastejava em algum tapete.

Júlia e Danilo, os sobrinhos que eram filhos da falecida Fátima, estavam na casa dos vinte, e só se pronunciavam  quando alguém lhes dirigia a palavra. Na maior parte do tempo se comunicavam mais com a vó Judite, que através de expressões debochadas e reviradas dos olhos, criava uma linguagem silenciosa para demonstrar o que achava da conversa da mesa. De forma lúdica, os três transformavam o papo, geralmente chatérrimo, em uma piada interna.

“Como é bom estarmos todos aqui reunidos,“ continuou Roberto, “como somos abençoados. No final do dia, essa é a melhor recompensa: a família reunida na mesa. Nenhum bem material pode se comparar à isso, à essa luz, prosperidade e paz que temos aqui hoje.”  Ele ergueu o copo de cristal cheio de champanhe à sua frente, propondo um brinde. O ângulo do movimento fez com que a luz que vinha da janela refletisse na taça e no Rolex em seu pulso esquerdo, acidentalmente cegando seus parentes do outro lado da mesa por um breve momento, que precisaram semicerrar os olhos. Dona Judite piscou forte cinco vezes além do necessário e fez uma careta, levando os netos a se entreolharam, sorrindo.

A conversa começou leve. Pequenos recipientes ornados de cerâmica e vidro comportavam uma variedade de castanhas, nozes e frutas secas no centro da mesa. Mãos de todos os cantos do cômodo se esticavam, ansiosas para se ocuparem já que dedilhar em uma tela estava fora de questão. Dedos com calos, dedos de pianista e dedos perfeitamente esmaltados sentiam a textura de pedaços de damasco seco, se enrolando no fruto laranja enquanto seus donos procuravam a melhor forma de preencher o silêncio. Felipe observava os sulcos no fruto seco, esperando que a absorção de cada detalhe fosse fazer o tempo passar mais rápido.

“Vocês chegaram de viagem bem?”

“Sim, sim… mas pegamos uma chuva na estrada…”

“Nossa, o tempo está doido.”

“Você viu que teve um alagamento perto de São Conrado?”

Falar do tempo era clássico. Uma maneira democrática e simples de garantir que todos poderiam participar, mergulhar seus pés no papo sem medo de terem os dedos mordidos. Mesmo assim, apenas três a quatro vozes participavam no assunto. O restante se transformava em espectadores, tentando fazer o tempo passar mais rápido, degustando o máximo possível dos aperitivos como se fossem balas intermináveis.

Até que a refeição foi servida. Farofa de ovo, salada de batata, arroz, rosbife, bacalhau e, é claro, um grandioso peru.

“Uau, que lindo!”

“Caramba está com uma cara ótima!”

“Você se superou!”

A refeição havia sido inteiramente preparada pela cozinheira da casa, mas Ângela levou todo o crédito. A ideia do que servir havia sido dela afinal, então ela esperava pelo menos cinco minutos de elogios antes dos convidados, que já haviam chegado há noventa minutos, se servirem. Sem sorte. O único som que veio a seguir foi de talheres tilintando enquanto todos se serviam. Insatisfeita, Ângela levantava de seu lugar no fim da mesa para visitar a cozinha,  garantindo que a mesa tinha guardanapos, copos e vinho o suficiente.

“Senta e come, meu bem”, seu marido falou calmamente, quando ela havia escolhido um saleiro diferente para a mesa pela segunda vez. Ao sentar, ela pediu para seu filho sair do celular e em seguida seus olhos pousaram no prato da Carol, filha de Rosane. E este simples olhar de soslaio iniciou o primeiro ato.

ATO I: CRÍTICAS DESCONSTRUTIVAS

“Você não come carne?” Perguntou Ângela, observando as pequenas quantidades que não se encostavam de farofa, arroz e salada de batata.

“Não nos últimos quinze anos, não”, respondeu ela numa voz monótona, como em todo natal.

“Ah, que pena, está delicioso.”

“Mas, isso não pode ser saudável”, interferiu tio Rodrigo. “Há nutrientes que só tem na carne. O ferro e a proteína dela são insubstituíveis, nem chega a ser natural não comer, pois somos animais carnívoros.”

A garota, que não estava afim de discutir, apenas deu um sorriso amarelo e assentiu com a cabeça.

“Mas você está muito bem. Dá para ver que você deu uma engordada”, disse Sílvia, com a voz firme enquanto partia para a taça número cinco.

“Sim, você estava magra demais antes. Não combinava com suas feições. Agora seu cabelo encaixa melhor com seu rosto.”

“Brigada…?”, a garota olhou para baixo, querendo entrar em um buraco.

“Eu gostava do seu cabelo mais longo”, comentou a avó. “Meninos não ligam para garotas de cabelo curto.”

“Mas vó,” interferiu Júlia, surpreendendo a todos, “o cabelo da Carol está passando dos ombros”.

“Não, minha filha. Estou falando da Sílvia.”

E assim, o primeiro golpe foi dado.

O comentário fez com que a farofa descesse errado na garganta de Carol, que tossiu por um minuto até que um primo lhe passou a água para que ela parasse de engasgar.

“Na verdade os humanos são omnívoros”, disse Cristóvão, mudando de assunto ao ver sua irmã fuzilar a mãe com os olhos.

“O quê?”

“Sim, não somos carnívoros. Podemos facilmente nos adaptar sem carne. Conseguimos sobreviver apenas com cascas de árvore, se for necessário. No Oriente Médio, algumas pessoas até comem argila. Certos monges na Ásia até conseguem se disciplinar sem comer por um mês, e bom, há países inteiros em que a prática de comer carne não é bem vista, então o entendimento que o ser humano precisa de carne para viver é bem primitivo. Se você parar para pensar, uma churrascaria é um local de pura glutonaria.”

“Bom, mas uma carne mal passada não é algo que dá para recusar.”

“Nossa, fui numa churrascaria ótima esse ano, comentou outro primo.”

“Bom, de qualquer forma esses monges”, Cristóvão continuou, ele não havia acabado. Na verdade, ele estava apenas começando.

ATO II: DISCURSOS DE INFLAR O EGO

“Até li sobre um mistério. Era um faquir indiano que passou décadas sem comer ou beber água. Ele tinha um buraco no céu da boca onde, aparentemente, ele conseguia armazenar um pouco de água, acredito que essa anomalia se chamava…”

Judite, que estava no mesmo lado da mesa, dois lugares de distância, sutilmente apoiou seu rosto na mão. Ela piscou uma vez como alguém que estivesse tentando se manter acordada. Enquanto o filho do meio não deixava nem sua necessidade por oxigênio o interromper de falar, arfando perseverantemente durante um monólogo de fatos curiosos de um tempo tão desinteressante que até suas palavras pareciam ser coloridas em sépia. Em volta, as pessoas assentiam, fingindo interesse ou olhavam para seus pratos, presos no que parecia ser uma anomalia temporal onde os minutos se transformavam em horas, enquanto a conversa era monopolizada em jus a um ego inflado. Pela vigésima vez naquele ano eles ouviram sobre as viagens feitas pelo tio na Ásia, sobre o guru que lhe ensinou lições de vida no Tibete, sobre os passeios de elefante da Índia, e todos os momentos espirituais em sua jornada e como ele se encontrou pela vigésima vez naquele ano.

“Sabe quem fez uma viagem maravilhosa esse ano? A Sara”, lembrou Roberto. “A Cris me mandou umas fotos lindas que ela postou na Suécia.”

Danilo, Felipe e Diego, o garoto mais novo de Cristóvão, resmungaram em uníssono. Júlia apenas revirou os olhos e ao seu lado, Carol suspirou enquanto separava fatias de maçã da salada de batata, colocando os do lado de sua recém montanha de uva-passas marginalizadas no prato.

“Ah sim, eu recebi elas também. Que lugar lindo, não é?”, falou Rosane, que colocava a bebê para dormir em seu carrinho.

“A última vez que eu vi ela foi quando dirigimos para Petrópolis. Ela adorou o conversível. Falando nisso quando quiserem carona nele é só avisar que  –.”

“Eu não acredito nisso”,  interrompeu Pedro, que estava olhando para o celular há quinze minutos. Pedro tinha 27 anos, estudava sociologia e era um ativista para causas do meio ambiente e opiniões controversas. Pedro nunca havia saído do país, passava tempo demais na seção de comentários discutindo com estranhos em redes sociais e ocasionalmente se interessava por uma teoria da conspiração. Pedro poderia ter ficado quieto. Poderia ter não voltado ao assunto e deixado aquilo passar. Mas então não seria natal.

“No quê?”

O rapaz mostrou a tela do celular, que estava ocupada por um artigo sobre o tal faquir.

“Talvez por alguns dias até vai, mas ele deve ter enganado todo mundo de algum jeito. Ninguém fica tanto tempo assim sem comer e beber.”

“Bom, na Índia eu vi essas técnicas de perto”, respondeu Cristóvão, satisfeito por retornar ao assunto. “Eles são disciplinados, é uma questão mental. Até a medicina deles muitas vezes é diferente.”

“Mas tio, devem ser charlatões. Pelo menos a maioria. Tirando vantagem das pessoas por terem mais experiência de vida.”

“Veja, é uma questão cultural. Lá eles têm tradições diferentes das nossas que são aceitas, ninguém está sendo enganado. Só porque é diferente dos nossos métodos tradicionais não quer dizer que é errado.”

“Não sei. Acho que medicina é medicina e acabou. Aqui temos pesquisa e método, lá parece que eles usam métodos placebo para tudo. Eu não acredito que um método de respiração vai te impedir de sentir frio ou confiaria em acupuntura sozinha como anestesia. Isso não parece ciência.”

“Meu filho, há várias formas de ciência. E a ciência nem sempre é algo exato. A ciência está sempre sendo refutada por outra ciência, ela também não é algo que podemos confiar cegamente.” A tensão no cômodo estava palpável.

“É verdade,” disse nona Judite, “já viajei pro Nordeste e vi um homem fazer milagres na minha frente ajudando pessoas sem nada além de sua palavra”.

“Vó, isso não entra exatamente no que estamos falando…”

“Sabe o que é? Essa geração fala e fala que não quer seguir autoridade cegamente, mas é completamente parte da lavagem cerebral que a esquerda faz”,  Cristóvão disse, de uma maneira calma mas condescendente.

As palavras tiveram o efeito de uma bomba. Dona Judite sussurrou “uau”, com olhos tão arregalados que pareciam saltar das órbitas. Os primos fizeram caretas e agiram como se seus pratos de repente parecessem interessantíssimos. Exceto por Felipe, que parou de olhar furtivamente o celular por baixo da mesa para prestar atenção na discussão por vir, sussurrando em um ritmo “Treta! Treta! Treta!”. O tio Augusto, que havia apoiado a cabeça no encosto da cabeça para uma breve soneca, acordou em um sobressalto assim que Ângela arrastou a cadeira, levantando de supetão, expressando seu desprezo pelo novo assunto. Augusto passou a mão por seus poucos fios grisalhos e retornou a dormir.

ATO III: TRETA POLÍTICA

Politicamente falando, os membros daquela mesa eram divididos em liberais, conservadores, os que não opinavam por não entender e os que não opinavam pela falta de interesse. Ninguém nunca conseguia mudar a opinião de ninguém, os entusiasmados ficavam vermelhos e sem paciência, enquanto o resto apenas esperava que o assunto morresse logo, tentando começar um papo paralelo ou procurando em um arquivo mental pensamentos felizes para não se estressarem.

“Pai, nada a vê. Esses dias você recebeu uma fake news no WhatsApp que você espalhou para casa toda. A geração de vocês também é preguiçosa para buscar informação.”

Um erro fatal feito pelo filho do meio de Cristóvão, Rafael. Ele congelou em seu lugar quando sentiu os olhos do seu pai sobre seu corpo. Rafael iria pagar por isso na volta para casa até sua orelha praticamente cair.

Mas agora já era tarde demais, o pino da granada já havia sido retirado e a ocasião mais evitada da noite chegou estrondosa como Judas. Cristóvão falava com segurança, mencionando fontes de notícias e as mesmas visões tão antigas, que poderiam estar cercadas de teias de aranha. Pedro argumentava com cada frase, e não cedia mesmo quando no meio do caminho percebia que estava errado. As tias ocasionalmente interferiam, argumentando a favor dos maridos mesmo quando não entendiam do assunto direito. Danilo conferia se os argumentos trazidos à tona estavam corretos em seu celular e a maioria trazia números, pesquisas e informações lidas pela metade ou tiradas do contexto.

Os termos mais utilizados pelos seguintes trinta minutos foram “corrupção”, “fake news”, “aquecimento global”, “economia”, “imposto” e “salafrário”, o novo termo favorito de Roberto. As palavras eram acompanhadas por nomes de diferentes cargos públicos e recheadas de palavrões.

Os olhos da mesa acompanhavam como espectadores em uma partida de tênis. Nomes de políticos começaram a ser jogados como confete. As vozes aumentaram de volume e a bebê começou a chorar por ser acordada, até que Carol, não aguentando mais, fugiu para o banheiro e de lá ligou para uma amiga.

“Ah não, mas temos que concordar que [insira nome do político aqui] só fez desgraça para esse país”, exclamou Rodrigo, que estava do lado de Cristóvão na discussão.

“Ah sim, mas [insira outro nome de político associado com polêmicas] foi bem pior!”, respondeu seu filho.

Até eles sem querer se pegaram concordando, com o mesmo tom de voz agressivo e defensivo. Os mais velhos dominavam o assunto, enquanto os mais novos morriam de tédio ou frustração, sabendo que não valia a pena discutir ou gastar qualquer energia. As esposas estavam aflitas, pois não queriam lidar com o estresse que isso resultaria mais tarde, então começaram a bolar jeitos de fugir do conflito. Mas elas não eram as únicas. De forma estratégica o assunto oscilou de economia para tecnologia, e os jovens se encontraram na vantagem. Danilo e Felipe se colocaram no holofote, tirando o microfone metafórico de seus parentes. O assunto virou sobre ”blockchain“, “NFTs”, bolsa de valores, “bitcoin” e termos que a maioria das pessoas ali não entendia.

ATO IV: DESCONFORTO TRANSPARENTE

Quando Carol voltou do banheiro, a conversa de política e economia havia sido apaziguada como flamas de incêndio por um extintor. Curiosa para saber o que havia feito o assunto mudar tão rápido, Carol retornou ao seu lugar na mesa para encontrar sua superfície vazia a não ser por copos. Outro bom sinal: a sobremesa estava vindo. Tia Sílvia com a língua enrolada e os olhos lesados, estava falando com ânimo na voz, como se suas palavras fossem feitas de açúcar, e cada uma derretia em sua boca:

“Vocês viram quem já vai se casar mesmo só estando no relacionamento há dois meses?”

“A Alice, né? Ela deve estar grávida.”

“Vocês viram o botox da irmã dela, que horror?” Sibilou Silvia, como se ela nunca tivesse feito uma dezena de procedimentos estéticos.

Olhando para a tia, a garota mais nova lembrou do livro de Machado de Assis que leu para a escola, e lhe ocorreu o pensamento de que tia Silvia também era dissimulada, mesmo não tendo cem por cento de certeza do que aquilo queria dizer.

Um prato cheio de rabanada, uma torta de maçã, um bolo de nozes e um pote de sorvete foram postos sobre a mesa, quando chegou o assunto que surpreendeu as meninas de não ter chegado mais cedo.

“E vocês meninas? Estão namorando?”

 Ah, sim. O típico papo de “e os namoradinhos” de tia. Um clássico.

Intrigadas, Ângela e Rosane direcionaram suas orelhas para o papo.

“Não,” deu de ombros Carol. “Não tem ninguém interessante, mesmo.”

“Não, mas eu acabei de começar um emprego novo e…” Júlia estava começando a se animar, quando foi brutalmente interrompida.

“Falando nisso, vocês viram que a Sara foi promovida?”

As meninas reviraram os olhos e suspiraram novamente, mas pelo menos escaparam da interrogação. Ou quase. Quando as senhoras de cinquenta anos não receberam uma resposta verbal, a vó interferiu na conversa:

“Mas Júlia, querida… você gosta de homem, né ?”

Neste instante, Augusto, que estava quieto durante toda a comemoração, começou a tossir. Ele se engasgou com uma noz do bolo e estava quase ficando roxo. Pedro, que estava ao seu lado, deu tapinhas em suas costas e Danilo, que estava à sua frente sentiu um leve respingo na bochecha.

Júlia já estava enchendo a boca com rabanada para não ter que se explicar, quando foi salva pelo gongo. “Hora de abrir os presentes!”, chamou Roberto que levantava da mesa para ir ao outro canto da sala perto de uma árvore de natal sintética tão nua, que ninguém a havia reparado.

A mesa das crianças se esvaziou em questão de segundos, enquanto os adultos se certificavam que Augusto ainda estava respirando. Sílvia levantou cambaleando, deu um passo falso no chão e sem querer derrubou parte de sua taça em um dos garotos de Cristóvão, que soltou um “Ei!”, mas foi ignorado, enquanto parte do líquido foi parar no chão branco.

Os presentes foram trocados entre praticamente todos os membros. Enquanto os garotos se contentavam com camisas sociais e notas de dinheiro, as garotas não tiveram tanta sorte. Carol ganhou um par de brincos pelo quarto ano seguido, apesar de nunca ter tido as orelhas furadas, e Júlia pagou seu preço por rir da prima. Ao rasgar o papel de presente de algo retangular que ela suspeitava ser um livro, a segunda prima mais velha se deparou com uma tábua de cortar legumes. A mensagem que ela estava recebendo não poderia ter sido mais clara.

Após os agradecimentos, estava claro que todos estavam exaustos. Algumas crianças já haviam se esticado no sofá e fechado os olhos. Ângela andava pela casa apagando todas as luzes.

Felipe, Pedro e Danilo já haviam desistido de fingir o interesse no assunto quando o tema retornou para política, em um papo de reclamação mútua entre Roberto, Cristóvão e Rodrigo. Já era meia-noite quando Fernanda, que ficou em silêncio na maior parte da noite, apoiou a cabeça nas mãos, pois já não tinha mais energia para fingir interesse ou paciência. Judite parecia não se importar mais onde estava, pois chegou a tirar uma bolinha de meleca do nariz e a petelecou para longe. A conversa que antes estava sendo esculpida, puxada para uma direção ou outra, com rumo e objetivos claros, agora parecia mais perdida que cego em tiroteio.

As luzes da sala haviam sido acessas só para serem apagadas de novo, um sinal que os membros inteiramente submergidos no papo político pareciam não captar como uma mensagem de “cai fora”.

Eventualmente Rosane se levantou com a bebê no colo após dar um olhar significativo para Cristóvão três vezes e receber um “só mais cinco minutinhos” de volta:

“Bom, tenho que colocar essas crianças na cama.”

As palavras foram música para os ouvidos de quase todos ali. Rapidamente os jovens se levantaram prontos para se despedirem dos primos e abraçar as tias. O ânimo de ir embora restaurou um pouco as energias de todos ali, e os homens já estavam se abraçando como se nenhum deles havia gritado horas antes.

Estavam rodeados na porta de entrada se despedindo do núcleo de Cristóvão quando Augusto afirmou também que estava cansado e queria ir. Ele deu tapinha nas costas dos garotos, abraçou Júlia mais do que ela se sentia confortável e quando estava perto da porta, deslizou em um ponto escorregadio no chão.

O senhor caiu, batendo a cabeça no chão e levando seus parentes a arregalaram os olhos.

ATO V: CHEGA!

O carro de Cristóvão não tinha espaço para levar Augusto ao hospital, então Fernanda foi para casa com as crianças enquanto seu marido acompanhou Rodrigo e sua família no carro menos ideal possível para levar alguém a um hospital. Danilo levou a vó para casa, mas o resto não escapuliu. Por algum motivo que ninguém realmente entendeu, foi combinado deles esperarem onde estavam para mais notícias, para ficarem atentos caso Augusto tivesse se machucado gravemente – algo que eles também poderiam fazer do conforto de suas próprias casas.

Sílvia não assumiu responsabilidade nenhuma e em questão de segundos estava roncando no sofá com as luzes apagadas.

No hospital, Pedro, sua mãe e Cristóvão estavam na sala de espera, enquanto um médico avaliava o tio-avô. Cansado e impaciente, Pedro olhou para o relógio que afirmava ser uma e meia da manhã. Ele esfregou os olhos e disse, para ninguém em específico:

“Natal que vem, eu vou para a praia.”

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima