Machado de Assis é chato?

Chato é não ter o privilégio de conhecer nossas escritoras e escritores em toda sua qualidade literária, apenas porque não há quem nos pegue pela mão e nos faça passear por essas escritas e histórias incríveis

Estou relendo Cem Anos de Solidão, do escritor colombiano Gabriel García Márquez. Relendo é apenas uma expressão, porque minha impressão é de que estou tendo contato com o livro pela primeira vez. A explicação é relativamente simples: conheci essa obra muito cedo e, com certeza, não vi tudo que vejo agora nem aproveitei a escrita deliciosa de Márquez como deveria. Isso significa que não deveria tê-lo lido tão cedo?

Gabriel García Marquez.

Essa pergunta foi de certa forma respondida semana passada pelo youtuber Felipe Neto, na sua conta do Twitter. Ao entrar na brincadeira proposta em uma foto, com a sugestão “Crie uma treta literária e saia”, Felipe Neto escreveu: “Forçar adolescentes a lerem romantismo e realismo brasileiro é um desserviço das escolas para a literatura. Álvares de Azevedo e Machado de Assis NÃO SÃO PARA ADOLESCENTES! E forçar isso gera jovens que acham literatura um saco” (a caixa alta é da publicação original).

Vamos por partes: desserviço é um termo bem pesado e pejorativo para se referir à leitura. Ler nunca será desserviço, nem se você ler só bula de remédio. Afinal, é assim que temos contato com a estrutura textual, vocabulário, gramática – não interessa se é “alta” ou “baixa” literatura (termos que me fazem arrepiar o cabelinho da nuca). Outra questão levantada: Felipe Neto cita dois grandes escritores da nossa literatura: Álvares de Azevedo e Machado de Assis. Aqui entramos em outra seara bem polêmica: se há idade para a leitura dos clássicos. Não, não há. O que pode faltar, muitas vezes, é orientação adequada de forma a tornar esse contato algo prazeroso. Colocar Dom Casmurro ou Memórias Póstumas de Brás Cubas na lista dos livros obrigatórios do ensino fundamental sem que seja criado um roteiro de como trabalhar as histórias, linguagem, período histórico, é um tiro no pé. Adolescentes tendem a se interessar por textos bem mais fáceis e palatáveis. No entanto, quando se explica quem foi Machado de Assis, sua trajetória, sua resistência e, especialmente, quando se analisa a construção do seu texto, não há quem não se encante.

Os clássicos, como o nome sugere, não envelhecem. Italo Calvino, no livro Por Que Ler os Clássicos, explica: “Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-las pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-las”. Melhores condições. Importante atentar para esse detalhe do conceito, já que o meio em que se vive determina, muitas vezes, como será o contato com essas obras.

Clarice Lispector.

Quer ver um exemplo? Há 12 anos, a Rede Globo exibiu a minissérie Capitu, inspirada na obra Dom Casmurro. Antes do lançamento, porém, colocou no ar o Projeto Mil Casmurros, de leitura coletiva e colaborativa da obra. Funcionava da seguinte forma: a pessoa entrava no site, escolhia um dos 1 mil trechos nos quais o livro foi dividido, ligava a webcam e gravava. O projeto venceu prêmios e incentivou a audiência da minissérie, que foi vista por mais de 33 milhões de brasileiras e brasileiros – muitos bastante jovens.

E o que minha releitura de Cem Anos de Solidão e Felipe Neto têm a ver com tudo isso? Li esse livro cedo e sozinha. Não foi indicação de escola, foi apenas curiosidade minha. Achei estranho, difícil e foi quase um tormento terminá-lo. Hoje, estou lendo devagar – que é para demorar para acabar. A orientação que me faltou lá atrás tenho hoje pela minha própria formação, mas fico pensando em quantas pessoas têm contato com obras incríveis como essa como se estivessem tateando no escuro. Quando isso acontece com Machado de Assis, Álvares de Azevedo, Clarice Lispector, Gregório de Matos, entre tantos outros, é realmente de chorar. Chato, Felipe Neto, é ler sem orientação adequada para a idade em que o livro nos foi apresentado. Chato é não ter o privilégio de conhecer nossas escritoras e escritores em toda sua qualidade literária, apenas porque não há quem nos pegue pela mão e nos faça passear por essas escritas e histórias incríveis.


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