América em chamas

Negro, preto ou afro-americano? Os Estados Unidos e sua guerra racial

Não há um consenso na sociedade americana quanto ao uso correto da palavra que designa a raça de boa parte de sua população, com a ancestralidade de origem africana. São mais de 40 milhões de cidadãos que se intitulam (ou são intitulados) como sendo negros, pretos ou afro-americanos. Os Estados Unidos possuem 328 milhões de habitantes, sendo 246 milhões de brancos (euro-americanos), e o restante distribuídos (segundo o seu padrão de classificação) em hispânicos, nativos, asiáticos e etnias. Os afro-americanos (designação oficial no censo) discordam quanto à nominação correta desde o início do século 20.

Lerone Bennett.

Em um célebre artigo escrito, em 1963, o historiador americano e editor da revista Ebony, Lerone Bennett Jr, esclarece a complexidade da contenda. Aqui um trecho de seu texto:

“Essa questão está na raiz de uma amarga controvérsia nacional sobre a designação adequada para os americanos que podem ter ascendência africana identificada. Um grande e barulhento grupo está lançando uma campanha agressiva para o uso da palavra “afro-americano”, como a única designação historicamente exata e humanamente significativa para essa questão fundamental da população americana. Esse grupo sustenta que a palavra “negro” é um epíteto impreciso que perpetua a mentalidade de mestre-escravo nas mentes de ambos: pretos e brancos americanos. Um outro grupo, igualmente grande, mas não tão barulhento, diz que a palavra “negro” é tão precisa e tem tanta eufonia como as palavras “preto” e “afro-americano”. Esse mesmo grupo desdenha das premissas dos defensores da mudança. Um negro chamado por qualquer outro nome, dizem, seria tão preto e tão bonito, e tão segregado. Às vezes, acrescentam, é muito importante para os negros dissiparem suas energias em lutas fratricidas sobre os nomes. Entretanto, contingente pró-preto afirma que os nomes são da essência do jogo de poder e controle; e que uma mudança de nome será um curto-circuito nos padrões de pensamento estereotipados que sustentam o sistema de racismo na América.”

Bennett toca num ponto crucial, que é o poder do uso da palavra pelo significante e seus amplos significados pelos afro-americanos. A palavra “certa” poderá tanto designar consciência e força para os afro-americanos, quanto disseminar um conflito léxico confuso, atrasando essa mesma tomada de consciência, que no contexto de 1963 quanto agora, permanece necessária. Para o branco americano racista, quanto menos unida a comunidade negra, preta ou afro-americana estiver, melhor. Negro, preto ou afro-americano? Como já disse um africano bem conhecido, “tudo pode naquele que me fortalece”.

Calejados da história aviltosa de seus antepassados em solo americano, seus descendentes iniciam no século 20 uma trajetória de luta pela preservação de suas identidades originárias e bem como das suas vidas. Com muita coragem, consciência política, força e união, os afro-americanos começam a ocupar o seu lugar por direito na sociedade anglo-saxã, brilhando (e até mesmo dominando) em áreas que formam o consciente coletivo de qualquer nação: as artes, o esporte e a política.

Em 2015, o policial branco Michael Thomas Slager atira pelas costas em Walter Lamer Scott, um afro-americano.

Ainda que um presidente afro-americano tenha sido eleito, o repúdio pela origem africana prevalece sem constrangimento algum pelos racistas, vide os últimos assassinatos públicos cometidos pelas forças da lei nos últimos dias (e na última década). Eles reiteraram de maneira incontestável o fracasso do país como promotor de justiça e igualdade para todos. Em suas entrevistas e discursos, Obama teve a sensibilidade de não focar no assunto “raça”, afirmando que seria o presidente de todos os americanos. Ao ser eleito como o primeiro presidente afro-americano da história, transformar-se imediatamente no símbolo máximo da resistência de todo um povo, que passou boa parte de sua história recente condenada à uma morte lenta.

Nesse instante, os Estados Unidos estão nus. O ódio racial é uma raiz profunda e muito forte, como estamos assistindo. Ainda que passados 157 anos da libertação dos escravos, e da lei que acabara com a segregação racial em 1964, os chauvinistas não suportam a presença de afro-americanos por perto, ou até mesmo dentro “de seu território”. Uma questão que se apresenta insolúvel.

Os atuais assassinatos públicos promovidos pela polícia, acontecem desde sempre na historiografia dos africanos que aportaram no continente. Lembrando que Martin Luther King foi assassinato por um radical branco, em 1968, com um tiro de fuzil. Das execuções públicas, às cinzas da violência, a dívida para com os afro-americanos está longe de ser quitada.

Achille Mbembe.

O filosofo e historiador camaronês Achille Mbembe, em seu livro Crítica da Razão Negra (uma referência em pós-colonialismo europeu) analisa a visão criada pelos europeus colonialistas da presença africana no mundo, “negro é aquele que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender. Essa invisibilidade está no cerne do racismo, que, além de negar a humanidade do outro, se desenvolve como modelo legitimador da opressão e da exploração”. De acordo com Mbembe, a África representaria “um não lugar” para os europeus, signo de atraso, incultura e incapaz de produzir algo valioso para a humanidade. Um legado maldito permanece no inconsciente de muitos americanos.

Da humilhação nos campos à sobrevivência das brutalidades dos clãs. Dos dolorosos choros nas igrejas ao medo de voltar para casa invitaram à comunidade afro-americana (ou negra) a aliar todas as suas frustrações e fúrias para um só objetivo: vamos sobreviver, viver e ensinar, independentemente de todos os obstáculos.

George Floyd sendo assasinado pelo policial Derek Chauvin.

Seja negro, preto ou afro-americano, na seara política, W.E.B. du Bois, Martin Luther King, Rosa Parks, Malcolm X, os Panteras Negras e sua Angela Davis pregaram (e até mesmo lutaram) pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Suas posturas políticas são até hoje referência em qualquer debate sobre direitos civis. Nos tempos atuais, o Black Lives Matter surge como o grupo mais influente de protesto desde os Black Panthers. Uma de suas metas principais é acabar com a violência sofrida pelo “Coletivo de Cor” (termo que agrupa as diversas minorias não brancas), exigindo igualdade para todos, e em todos os campos e lugares dentro do país, promovendo múltiplos protestos sincronizados.

“Humilhado e profundamente desonrado, o negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa e o espírito em mercadoria, a cripta viva do capital. Porém, e esta é sua patente dualidade, numa reviravolta espetacular, tornou-se o símbolo de um desejo consciente de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada no ato de criação e até mesmo no ato de viver em vários tempos e várias histórias simultaneamente. Sua capacidade de fascinação, ou mesmo de alucinação, não fez senão se multiplicar. Alguns nem sequer hesitariam em reconhecer no negro o limo da terra, o veio da vida, por meio do qual o sonho de uma humanidade reconciliada com a natureza, com a plenitude da criação, voltaria a ganhar cara, voz e movimento”, escreveu Mbembe.

Nem a epidemia, que já matou mais de 155 mil americanos (segundo o CDC – Centro para o Controle e Prevenção de Doenças americano) impediu os furiosos protestos em várias cidades dos Estados Unidos.

Os afro-americanos nos deram no século 20 a riqueza do sentir na pele, nos ouvidos, no coração o poder de uma alma repleta de som, fúria e autenticidade. A cultura popular americana, que nos influencia desde os anos 1950, deve muito a esse povo. Não existe um só país no mundo que não absorveu a cultura negra (ou afro-americana) direta ou indiretamente.

Lembrando que o Nobel de Literatura de 1993 foi para a escritora afro-americana Toni Morrison, não é para qualquer um, e não foi mesmo.

Que comunidade negra tem uma história de superação coletiva tão forte quanto a americana nos últimos 100 anos?

“Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty num tom bastante desdenhoso, “ela significa só o que eu quiser que ela signifique. Nem mais nem menos”.

“A questão é”, disse Alice, “se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes”.

“A questão é saber de quais você tem que ser mestre. Isso é tudo”, respondeu Dumpty.

Lewis Carroll, em Alice Através do Espelho.

Até a semana que vem!

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