Além do sangue de Taxi Driver

Como um roteiro brilhante fez de um pequeno filme uma obra prima do século 20

Completando 44 anos de vida, sem perder sua força e significância, Taxi Driver (1976 – Martin Scorsese) é uma obra perturbadora, portanto inesquecível. A história criada por Paul Schrader convida o espectador a observar a decadência de uma cidade (NY) pelos olhos de um jovem rapaz na década de 1970. A partir dessa premissa estrutural, o roteirista construirá a complexidade de Travis Brickle (Robert De Niro), o personagem principal.

Schrader foi muito feliz na sua audácia de escrever a história de um “personagem só”: tudo que se vê no filme é o que Brickle deseja que vejamos. Nos transforma em reféns de sua crescente instabilidade.

O filme transpassa a seara cinematográfica, mérito ao seu roteiro que possibilita as mais diversas interpretações psicológicas e psicanalíticas. Quando um trabalho fílmico se afirma no universo intelectual dos conceitos, signos e de relações com outros saberes, torna-se uma referência atemporal de estudo.

A história se desenvolve (bem resumidamente) em 4 atos, cada qual numa crescente exposição dos sintomas e patologias que o jovem Travis Brickle carrega.

1.° Ato

Não conhecemos nada do passado de Brickle, a não ser que ele serviu no Vietnã. Ele é um jovem calado, insone, solitário, morando em um apartamento sujo (permanecendo assim durante todo o filme). Um homem sem lugar, dissociado dos acontecimentos da cidade numa apatia crônica.

Sua vida se restringe a trabalhar como motorista de táxi na noite, ficar sozinho em casa, e frequentar cinemas pornôs nas horas vagas. O roteiro deixa muito claro que a vida do personagem principal é uma repetição do “sem sentido”, tão desinteressante quanto ele. Seu oposto radical é a Noite, uma entidade que exibe sua decadência, odores, cores, sons, depravação… vida.

O jovem taxista nada conhece além da janela do carro que dirige.

2.° Ato

Betsy (Cybill Sheppard) e Travis.

Uma tentativa idílica de viver o amor clássico dá início ao segundo momento do filme. O solitário Travis flerta com a angelical Betsy, numa idealização de união que se mostra improvável de acontecer. Betsy é uma mulher branca, bonita, se veste com decência e trabalha para um homem poderoso. Ela é a mulher “perfeita para casar” na idealização de Brickle. Seu despreparo afetivo põe tudo a perder. Tomado pela raiva da rejeição (e não entendendo seus motivos), ele se desorganiza emocionalmente, alterando o equilíbrio de seu aparelho psíquico, dando início às manifestações de psicose.

Jovem, solitário, traumatizado, deslocado socialmente, e agora, objeto de repulsa e medo pela mulher que desejou… O despertar para a destruição, para sua pulsão de morte é inevitável.

3.° Ato

Desse ponto em diante, as questões psíquicas e psiquiátricas do personagem ditam a narrativa, e começamos a entender com mais substância sua estrutura psíquica. Só existe o presente para Travis, não há menção de passado. Não há raiz, aterramento. Como taxi driver, ele vê a vida sempre em movimento, por intermédio de um não lugar, que é o automóvel. Com certeza a guerra foi traumática (como tem de ser), entretanto a apatia libidinal (possivelmente) é pregressa a esse acontecimento.

Justificativa: pois se tivesse vivido situações referenciais de afeto ou erotismo, estaria voltado a procurar recuperá-los na vida, e não é isso que se vê no filme. Tem-se a percepção que ele não diferencia pornografia de afeto, ou vê na atuação externa do outro, essa possibilidade de viver com a pessoa, em estado estático, o movimento que vê na tela

A rejeição feminina é impossível de suportar, sendo impossível administrar a emoção negativa que isso lhe causou. Como resultado, a evacuação dessa ira é transmutada em violência física, demonstrando que houve uma falta do amor primordial (mãe). O amor imaginado por Travis é um ódio, até então recalcado em seu inconsciente.

Sua tentativa de ter uma vida “normal” fracassou, sendo assim, assume a força da sua pulsão de morte e sente prazer com ela. O objetivo agora não é conquistar um amor, e sim, destruir o objeto que é admirado pela pessoa que rejeitou o seu amor (idealizado). Ele deseja assassinar o político para qual Betsy trabalha. Tânatos irá colocar a magnitude necessária para obter sua satisfação.

Um rito de passagem é feito para executar a destruição do objeto de desejo do outro. Numa regressão infantil, ele brinca com um revolver no espelho (cowboy), e logo em seguida se apropria da identidade de seu antagonista (índio), que na sua origem possui uma raiz tão antiga quanto o seu ódio. Travis raspa a cabeça e assume um penteado tribal ameríndio (moicano – signo de resistência) finalizando seu rito do “antiguerreiro psicótico”.

Infelizmente para Travis, sua tentativa de assassinato foi frustrada. Seu complexo de Édipo permanecerá insolúvel.

4.° Ato

Paul-Schrader-Martin-Scorsese-e-Robert-De-Niro.

A hora da catarse. Duplamente frustrado, Travis parte para a sua “redenção”. Não mais atacará a sociedade, agora é o momento de reabilitá-la, executando cafetões e “libertando” a prostituta adolescente “Easy” (Jodie Foster) do círculo do sexo e drogas.

Em cores renascentista, o taxi driver mergulha em seu ódio. Sua apatia desaparece, bem como sua inexpressividade social. Pela primeira vez detém o poder que pode modificar a vida das pessoas. Ele não conseguiu modificar nada indo para a guerra. Também não conseguiu nada pela palavra, nem pelo afeto, restando matar a escória como um justiceiro.

Paul Schrader criou uma história desoladora, sem rodeios, brilhante, fazendo de Taxi Driver um filme referência e atemporal.


Até a semana que vem!

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