O primeiro hino da Lua

Três cantores-compositores desafiaram a euforia em torno da conquista da Lua e do espaço.

Único satélite natural da Terra e o quinto maior do Sistema Solar, a Lua já fazia parte da vida por aqui muito antes do Eagle soltar-se do módulo de comando para fazer a primeira alunissagem bem-sucedida de um voo tripulado. Depois de quatro dias de viagem, Neil Armstrong tranquilizava a NASA, a América e o mundo: “a Águia pousou“. O fato está completando 50 anos, mas a Lua, o espaço sideral e o desconhecido sobre a vida fora da Terra sempre fascinaram civilizações desde a Antiguidade. A corrida espacial, estimulada pela Guerra Fria, só fez aumentar o interesse em olhar para cima em direção aos corpos celestes. Curiosidade que se estendeu à figura do astronauta, às naves espaciais, aos avanços da ciência e aos limites da tecnologia, mas também à ficção e à imaginação. Da mesma forma, dá para pensar que muita gente olhava o céu para certificar-se de que realmente estava só, porque se nós podíamos ir até “eles”, “eles” também podiam vir até nós.

A partir do final dos anos 50 e na década seguinte, a conquista do espaço influenciou manifestações da cultura e da arte nos dois lados da Guerra Fria. Sputnik e satélites artificiais, Laika, a NASA, astronautas e cosmonautas, Gagarin, foguetes, outros planetas, discos-voadores e extraterrestres, além das missões Apollo, é claro, passaram a ser referências obrigatórias na cultura pop. Nada estava imune ao fascínio pela corrida espacial, que ganhou mais ênfase e intensidade nesse período. Uma “estética espacial”, se é que podemos definir dessa forma, passou a influenciar filmes e livros, coleções de moda e design, a publicidade, a televisão. A excitação girava em torno de um lugar diferente, não necessariamente melhor, porque desconhecido, mas diferente. A música pop, que há muito já tinha a Lua e o espaço como inspirações, também entrou na era espacial.

Tendo a Lua

Pesquisa rápida na Internet indica mais de 200 canções com a Lua no título. Ela inspira artistas, poetas e compositores bem antes da corrida espacial. A luz e a sombra (Dark Side Of The Moon, Pink Floyd, 1973), o mistério em torno da Lua já convidaram para a dança, o amor, a desilusão e o isolamento. Os exemplos são muitos. Quando o jazz era popular, Moonlight Serenade, composta e gravada pela big band de Glenn Miller em 1939, era o tema para dançar juntinho nos salões de baile e festas de formatura. Blue Moon, de Richard Rodgers e Lorenz Hart, é de 1934, gravada por Frank Sinatra, Billie Holiday, Elvis Presley, entre outros. Fly Me to the Moon, escrita em 1954 por Bart Howard, também foi gravada por Sinatra, no mesmo ano, e por Paula Toller (Kid Abelha) no seu primeiro álbum solo, em 1998. How High the Moon, standard do jazz de Nancy Hamilton e Morgan Lewis, escrito em 1940 para um espetáculo da Broadway, gravado por Benny Goodman e sua orquestra com enorme sucesso, acabou se tornando um dos principais exercícios para as renovações harmônicas e melódicas do bebop nos anos seguintes, via Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan. Moon River, música de Henry Mancini e letra de Johnny Mercer (1961), foi eternizada por Audrey Hepburn no filme Breakfast at Tiffany’s (Bonequinha de Luxo). No mesmo ano, ganhou o Oscar de Melhor Canção Original e o Grammy Awards no ano seguinte como Gravação do Ano e Canção do Ano. A primeira missão Apollo é de 1961.

Audrey Hepburn em “Bonequinha de Luxo, 1961. Foto de divulgação da Paramount Pictures .

E se eles não voltarem          

Apesar da euforia com a Apollo 11 e a promessa de levar o homem à Lua, o programa nunca foi uma unanimidade. Dois anos antes, em 67, a primeira tripulação morreu carbonizada dentro da cápsula ainda no solo. É bastante conhecida a opinião do romancista norte-americano Norman Mailer. Contratado pela revista Life para cobrir a missão Apollo de 69, Mailer criticava a “esterilidade científica” da empreitada. A imprensa inglesa chegou a dizer que o programa espacial, além de ser usado para fins políticos, era insustentavelmente caro. Também é bastante provável que muita gente tenha se questionado sobre o que podia dar errado na corrida pela conquista do espaço: e se eles não voltarem, se os astronautas, por alguma razão, não conseguirem retornar à Terra? As missões tripuladas à Lua foram encerradas em 1972, sem capturar a imaginação dos Estados Unidos e sem justificar o alto custo, especialmente em meio à recessão global. Quase ao mesmo tempo, três cantores-compositores fizeram uma pergunta ainda mais perturbadora: e se um astronauta resolver trocar, deliberadamente, a vida na Terra pelo espaço ?

David Bowie na época do lançamento de Space Oddity. Foto de divulgação da Philips .

Space Oddity” foi lançada em 11 de julho de 69, cinco dias antes do lançamento da Apollo 11 e nove antes de Neil Armstrong pisar o solo lunar pela primeira vez. Bowie não acreditava na canção. Depois de tentar carreira na publicidade, trabalhar como ator e mímico e lançar um primeiro álbum, fracassado, em 67, tentava mais uma vez acontecer no concorrido cenário da música pop londrina do final dos 60. Ele sabia, como ex-publicitário, que “Space Oddity” poderia surfar no sucesso iminente da Apollo 11. A confirmação da expectativa de Bowie veio com a cobertura do evento pela BBC, que usou “Space Oddity” como trilha, praticamente lançando a música, o single, o LP que veio depois e o próprio Bowie ao estrelato. Entrevistado pela BBC, que cobriu o pouso na Lua com uma canção em que um astronauta se perdia no espaço, o que era totalmente absurdo, Bowie comentou: “eu quero que esse seja o primeiro hino da Lua“.  É o que afirma Peter Dogget em seu livro “The man who sold the world“, de 2011, traduzido para o Brasil por José Roberto O’Shea como “David Bowie e os anos 70 – O homem que vendeu o mundo”, publicado pela editora curitibana Nossa Cultura em 2014. Na mesma entrevista, segundo Dogget, Bowie falou mais sobre “Space Oddity“: “toquem quando a bandeira for içada, e tudo o mais.”, mas não deixou de manifestar sua opinião sobre a canção e o momento da corrida espacial, fazendo fila com as críticas da época: “acho mesmo que seja um antídoto contra a febre espacial“.

Ouça uma playlist preparada pelo colunista só com músicas sobre a lua.

Na canção de Bowie, Major Tom é um astronauta que resolve desconectar-se dos controles na Terra para se perder no espaço. Muitas das referências para “Space Oddity” foram assumidas pelo próprio Bowie ou identificadas por seus biógrafos. Peter Dogget cita em seu livro os contos de “The Illustraded Man”, do escritor norte-americano Ray Bradbury, publicado em 1951 (no Brasil, “Uma sombra passou por aqui”); uma série dramática exibida pela BBC quando a canção estava sendo composta, “Beach Head”, que falava sobre o imenso tédio de um astronauta, o mesmo que toma conta do Major Tom; e as leituras de Bowie de escritores como Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Jean Genet, existencialistas que o ajudaram entender a opção pelo isolamento e a recusa do indivíduo em relação à sociedade e a si mesmo, o que fazia bastante sentido no início dos anos 70, período em que a música pop optou pelo hedonismo, excessivamente centrada em si mesma.

O ator Gary Lockwood é dirigido no set por Stanley Kubrick durante as filmagens de “2001: A Space Odyssey.” Metro-Goldwyn-Mayer (MGM)/Ronald Grant Archive/Alamy Stock Photo

Mas a referência mais clara de “Space Oddity” é o filme “2001: A Space Odyssey“, ficção científica de 1968 produzido e dirigido por Stanley Kubrick. Bowie não quis surrupiar o título de Kubrick para a sua canção, optando pelo trocadilho e substituindo a odisseia pelo estranhamento. Coincidentemente, o quinto disco da banda norte-americana The Byrds, The Notorious Byrd Brothers, de 68, encerra com a canção “Space Odissey“, baseada no mesmo conto de Arthur C. Clarke, The Sentinel, que chamou a atenção de Kubrick para o seu filme. Em 66, os Byrds já tinham gravado “Mr. Spaceman”. A banda é diretamente responsável pela criação do folk rock e do space rock. Bowie, mais tarde, revisitaria seu personagem Major Tom em “Ashes To Ashes” e “Hallo Spaceboy”. Mas antes, em 72, lançaria seu quinto álbum de estúdio, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, com a saga de um rockstar bissexual alienígena, amoral e ambientalista. É o disco que tem “Starman“, regravada no Brasil pela banda gaúcha Nenhum de Nós, em 1989, no disco Cardume. “Astronauta de Mármore“, apesar de contestada, teve o aval do próprio Bowie.

Elton John ficou impressionado com “Space Oddity“, mas demorou quase três anos para pedir uma canção de astronauta para Bernie Taupin. “Rocket Man (I Think It’s Going To Be A Long, Long Time)” foi lançada em 1972 no quinto disco de Elton, Honky Chateau. Bernie também passou pela leitura de Ray Bradbury e dos contos de “The Illustraded Man”, especialmente o que empresta o título à canção. O personagem de “Rocket Man” tem sentimentos ambíguos com a sua rotina de astronauta, que aparece como uma atividade corriqueira e burocrática – It’s just my job / Five days a week. Bernie não dá muitas pistas sobre as verdadeiras intenções do seu personagem, se ele cogita voltar para a vida em família ou ficar em Marte, onde é frio e não há como criar filhos. Mas, assim como em Bowie, o tom é pessimista. Uma das críticas que se fazia à corrida especial era justamente a maneira como os astronautas eram retratados ou apareciam na televisão. Bowie disse à BBC em 69 que “a imagem publicitária de um astronauta trabalhando é a de um autômato, e não a de um ser humano… Se o meu Major Tom não for um ser humano, não será nada“. Parece ser a mesma síndrome que acomete o astronauta de Elton e Taupin. As duas canções têm o mesmo produtor, Gus Dudgeon. “Rocket Man” voltaria às paradas em 1991 na magistral regravação de Kate Bush e, mais recentemente, no lançamento da cine-biografia sobre a carreira de Elton, Rocketman.

O espaço e o terror

El Anillo Del Capitán Beto“, de Luis Alberto Spinetta, compartilha da mesma distopia proposta por Bowie, Elton e Bernie Taupin. A canção foi gravada em 1976, lançada no álbum El Jardim De Los Presentes pela banda Invisible, uma das muitas que Spinetta teve ao longo de sua carreira como guitarrista, cantor e compositor. Além do pessimismo ao tratar o tema, Spinetta tinha em comum com Bowie a leitura de autores existencialistas, Sartre, principalmente, influência confessa da canção, além de Jung, Freud, Rimbaud e Nietzsche. Capitão Beto é um motorista de ônibus em Buenos Aires que resolve construir uma nave-coletivo e sair pelo espaço, acompanhado de uma flâmula do River Plate, uma foto de Carlitos, a imagem de um santo e de um misterioso anel que o protegeria dos perigos do cosmos. Irremediavelmente, o personagem separado da Terra é tomado pela tristeza, a solidão e o tédio. Encontrado 15 anos depois de sua jornada pelo espaço, Capitão Beto tem a alma reduzida ao seu anel. 

Luis Alberto Spinetta.

Spinetta já deu inúmeras entrevistas sobre a criação de “El Anillo Del Capitán Beto“. Uma das associações recorrentes diz respeito ao período em que a canção foi composta, no primeiro semestre de 76. Em 28 de junho daquele ano, um golpe de Estado e uma ditadura militar se instalaram na Argentina, institucionalizando o medo, a insegurança e o terrorismo de Estado. “Capitão Beto” foi uma das primeiras vítimas, que optou pelo escapismo, a desilusão e um exílio no espaço, porque não havia outro lugar seguro na Argentina da época, segundo Spinetta. Luis Alberto Spinetta, El Flaco, El Maestro, como era conhecido por seus amigos e parceiros musicais, é figura central e das mais influentes na criação do rock argentino, que incorporou outros gêneros em sua música como o blues, o jazz, o tango, o pop e o indie. As bandas que criou e das quais participou desde os anos 60 até os anos 00, Almendra; Pescado Rabioso; Invisible; Spinetta Jade e Spinetta y los Socios del Desierto são inspiração para todas as bandas que vieram durante a sua trajetória em depois dela. Spinetta morreu em 2012, vítima de um câncer. “El Anillo Del Capitán Beto” foi regravada em 2005 pela cantora Fabiana Cantillo em seu projeto Inconsciente Colectivo, resgate das grandes canções do pop/rock argentino. Em 2013, o primeiro nanossatélite desenvolvido por cientistas argentinos levou o nome de “Capitán Beto” em homenagem a Spinetta.

Em 1970, a missão Apollo 13 quase tornou realidade a ficção de Bowie, Bernie, Elton e Spinetta. Uma explosão no módulo de serviço impediu a descida na Lua e a nave e seus tripulantes ficaram seis dias no espaço, praticamente desconectados da Terra. É uma pena e um dado alarmante saber que um em cada quatro brasileiros acredita que o pouso na Lua foi uma fraude, que ele nunca existiu, mesmo depois de 50 anos de provas mais do que consistentes. A descrença maior, segundo pesquisa do Datafolha este ano, é entre pessoas que já eram nascidas em 1969. Se elas acreditassem, talvez tivessem conhecido e entendido melhor as angústias e as motivações do Major Tom, do astronauta de Elton John e Bernie Taupin e do Capitão Beto, antes da bobagem que a Terra é plana. Os verdadeiros astronautas nunca acreditaram nisso.

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