Afro-brasileira: uma identidade ressignificada

O projeto de mestiçagem no Brasil e a intenção de anular a identidade da população negra

“…Encontrei minhas origens. Na cor de minha pele, nos lanhos de minha alma. Em mim…Em minha gente escura… Em meus heróis altivos…”
Oliveira da Silveira

Em 2013, após ter passado um período fora do Brasil logo depois de ter me formado, comecei a lecionar História em uma Escola Pública de Curitiba, no Ensino Fundamental II. Cheguei muito esperançosa e bem despreparada para o que enfrentaria nas escolas.

O tempo em que fiquei fora do Brasil mudou muito a concepção que tinha de mim mesma e do meu país. Observei muito as diferenças culturais, as questões raciais. Fiquei atenta em como lidavam com elas lá, em Bruxelas, capital da União Europeia, na Bélgica, uma cidade extremamente cosmopolita, que abriga imigrantes das mais diferentes partes do mundo. Era inevitável comparar com a forma como lidam com essas mesmas diferenças aqui no Brasil. Esse também foi um momento de autoconhecimento. Antes de embarcar para a Bélgica, sempre comentava com meus amigos brasileiros como eu não me sentia brasileira, me sentia negra, afro-brasileira, mas não brasileira, e eles achavam um absurdo. Hoje entendo melhor o que sentia, e o estranhamento deles na época.

Fora do Brasil, me senti mais brasileira do que nunca, percebi traços que nos unem e identificam em qualquer lugar do mundo, independente de características físicas, coisas peculiares, difíceis até de serem explicadas. Percebi um pouco de nossa ancestralidade africana, que considerava existir apenas entre os afro-brasileiros, mas de fato, está em todos nós. De toda forma, percebia que como brasileiros ainda éramos muito diferentes dos africanos. Fato que se dava, talvez, pela diferença entre “preconceito de marca e origem”, trabalhado por Oracy Nogueira. Compartilho com vocês a explicação dela: “Considera-se como preconceito racial, uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido a aparência, seja devida a toda ou parte da ascendência étnica que lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência isto é quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, o sotaque, diz-se que é de marca, quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as consequências do preconceito, diz-se que é de origem”.

Sendo assim, percebi que o preconceito racial no Brasil é de marca, enquanto que na Europa, semelhantemente aos Estados Unidos, é de origem.

Também sentia intensamente como não somos um povo branco, nem negro. A miscigenação aqui é extrema, sabemos disso, mas é diferente perceber isto quando nos comparamos com outros povos.

De acordo com o antropologista brasileiro-congolês Kapengele Munanga, este era o problema para se estabelecer um nacionalismo. Ele nos diz que as relações raciais brasileiras foram pensadas com total influência europeia e sob métodos eugenistas. “Em uma espécie de salvamento para o problema brasileiro, surgiram as teorias da mestiçagem e branqueamento”.

Existia a concepção de que a presença negra era negativa para a constituição da identidade nacional, para isso o “mestiço”, foi adotado como nova categoria étnica no país. Para o senso comum, o mestiço seria a mistura entre brancos, índios e negros.  Todavia, isso é mais complexo, envolve questões históricas, políticas e ideológicas, diminuindo as diferenças nesses âmbitos.

Vale lembrar que a categoria “mestiço” não se restringiu apenas ao Brasil, estendeu-se a outras nações, por exemplo, aos Estados Unidos. Ressalta-se também sobre as categorias humanas denominadas por cor, ou seja, branco, amarelo, negro ou mestiço que elas representam muito mais um conteúdo ideológico do que biológico. Munanga é quem nos alerta para o fato de que por vezes pensamos questões identitárias sem nos darmos conta da manipulação do biológico pelo ideológico.

A questão da identidade brasileira calcada sobre a mestiçagem enfatizou os negros, surgindo assim o chamado “mulato”, ou seja, alguém de origem da mistura entre as categorias branca e negra. Essa palavra tem significado extremamente pejorativo. Mulato deriva de mula, que é a cruza entre uma égua e um jumento. O que Osmundo de Araújo Pinho nos diz é que “esta nacionalidade, encarnada pela figura do mulato, desqualifica qualquer reivindicação de autenticidade cultural afrodescendente”

O negro, então, é incorporado na sociedade brasileira, constituindo uma identidade ambígua, que ao mesmo tempo nega e assimila o ser negro, em diversos âmbitos. Aquilo que antes era tido como ruim ou proibido, por exemplo, a capoeira, o samba, as religiões, agora é reconhecido. E aí podemos – e devemos – nos questionar o quanto essa incorporação não foi apenas uma conveniência política, mascarando o preconceito.

Essa incorporação das raízes e identidades culturais negras na identidade nacional é uma maneira de poder exercido para controle e uma falsa integração. Um domínio sobre a religião, a cultura e corpo negro que gera conflitos para a população afrodescendente sobre si mesma, em um complexo de inferioridade que se justificou por anos por meio das teorias racialistas. A estratégia de dominação era a da inclusão, e não da exclusão; como nos Estados Unidos, procurando integrar ao nacional a cultura negra e construir uma identidade pela miscigenação, negando uma identificação exclusivamente negra.

Sabia-se, como diz Munanga, que assim evitariam-se conflitos e que a ideologia de branqueamento garantiria o domínio do país aos brancos. Sabia-se também que afro-brasileiros não se sentiriam pertencentes. Foi atravessando o Atlântico, me distanciando e depois, mais madura, me reaproximando do Brasil que me senti, enfim, um pouco mais brasileira.

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