Ângulo

Dois pequenos passos e eu apontaria as lentes para o interior do pequeno caldeirão. Ao lado, sobre o outro fogão, o a gás, desligado, repousava um saco de farinha de milho

A fotografia é uma espécie de geladeira da história. Nela, armazenamos imperecíveis as imagens do nosso tempo. Li mais ou menos isso em algum veículo de comunicação, faz anos já. E não esqueci. Quer se familiarizar com as “Diretas Já?”, procure imagens; com o impeachment de Collor?, busque-as; com o topete de um tal Itamar Franco?, são abundantes. Imbuído desse desejo de registro histórico, é que fui até a Vila Torres, em Curitiba, num projeto de reportagem sobre alimentação, no presente governo, das classes mais vulneráveis. Projeto do redator-chefe do Cotidiano Curitibano, no caso eu mesmo; acompanhado por meu diretor de fotografia – eu também. Não é novo para você, leitor, que nosso jornal é pequeno – até porque nossa pretensão nunca foi ser grande – e, talvez por isso mesmo, consigamos honrar nosso compromisso com a verdade – figura mais e mais escamoteada na imprensa que não é séria.

Pois bem, aconteceu na quarta-feira, 23 de outubro. Munido de minha Canon e de minha boa vontade de captar o real no cotidiano desta gente sofrida, fui peregrinando entre os casebres, sob os olhares curiosos dos moradores. Dois deles, bem pequenos ainda, se aproximaram e perguntaram “Moço, você é da Globo?” Respondi que não e quis saber por quê. “Porque o pai disse que quer matar o cara do Jornal Nacional, o William Bonner, aquele mentiroso”, respondeu o menor deles. Hum, respondi, mas não sou da Globo não e nem conheço esse cara aí. Seu pai não precisa se preocupar comigo. “Então, filma nós!” Virei a câmera pra eles, fotografei-lhes os pezinhos descalços, que, satisfeitos, enveredaram por uma das múltiplas ruas da Vila.

Já era próxima a hora do almoço e, de algumas das moradias, provinha um cheiro bom de comida. E o adjetivo aqui não é protocolar não. Era bom mesmo! Imaginei um prato de feijão com arroz, quem sabe uma farofinha, talvez um ovo ou algum legume. Na remota hipótese, algum tipo de carne. Fui me achegando a uma das casas e uma piazada um pouco menos miúda, de uns oito, nove anos, foi meio que se enovelando em minhas pernas: “Fotografa nós. Nós queremos aparecer na televisão!”. Perguntei tem gente grande em casa? Tem sim! Vó Doralice se aproximou cabisbaixa e disse que o filho estava trabalhando, que não podia conversar. Apresentei-me, mostrei crachá, falei do cheiro bom da comida. Convidou-me a entrar.

A casa, de madeira, tinha o telhado muito baixo e, como sou alto, senti uma espécie de claustrofobia, o forro quase me roçando a calva. Ao lado do fogão a gás, um outro, improvisado, com tijolos e cimento aparentes, sem reboco. Sobre ele, uma panela em fervura, sem tampa.

E, então, Dona Doralice, o que a senhora está preparando para os netos? Nós do jornal gostaríamos de conversar com a senhora sobre alimentação. Posso dar uma olhada? Fazer umas fotos? “Pois, ué, pode sim. Não tem quase nada pra ver. Aqui, a gente come o que consegue. Tem dia que tem feijão, tem dia que só farinha”, respondeu-me sem me permitir acesso ao fogão. Olhei em volta. Não havia geladeira. Na bem organizada prateleira de madeira, meia dúzia de pratos inquebráveis, daqueles brancos, que se pode atirar ao chão e permanecem do mesmo jeito. Uns copos plásticos coloridos. De um lado deles, uma Nossa Senhora, do outro, uma estatueta de Iemanjá. Fotografei a fé! A ordem! Também fotografei a esperança nas mãos de Dona Doralice remexendo o conteúdo líquido da panela. “Tá pronto! Agora sim se o senhor quiser fazer retrao da comida…”

Dois pequenos passos e eu apontaria as lentes para o interior do pequeno caldeirão. Ao lado, sobre o outro fogão, o a gás, desligado, repousava um saco de farinha de milho. Estava aberto, com uma colher já ali inserida, para facilitar o processo. À medida que tentava fazer com que a câmera flagrasse o conteúdo sólido mergulhado no ralo caldo, os meninos foram se aproximando e se servindo. Uma água e dois pés de galinha, depois algumas colheres de farinha para engrossar a mistura. Foi o que vi no prato de um dos guris. Dona Doralice ralhou: “Se todo mundo pegar dois, não vai sobrar pra mim. Pega um só.” E o primeiro menino a se servir devolveu um dos pés de galinha. Os outros seguiram a regra. Cada um foi se sentando num canto. Não havia mesa na cozinha, só duas ou três cadeiras e um banco de madeira. Dona Doralice permaneceu em pé, encostada na pia, e, meio que envergonhada, voltou-se para a parede no momento de lamber o pé que lhe coube. Depois virou o prato direto na boca, pra que nada do conteúdo fosse desperdiçado.

Meia dúzia de cliques depois, uma voz, não sei se da ética, da consciência, da empatia ou de alguma humanidade que me reste, dissuadiu-me da ideia de fotografar a refeição. Os pés de galinha, ainda com as unhas, voltados para cima, no meio do caldo adornado com farinha, mesmo que saciassem a fome daquelas pessoas naquele momento, tinham algo que lembrava a “Indesejada das gentes”. Talvez a palidez demasiada ou a ausência de carne entre os ossos. Fiquei um pouco tocado ou constrangido em exibir assim, nua e cozida, a miséria alheia. Decidi que fotografaria apenas as crianças. Uma imagem amena. Tudo o mais seria descartado. Depois veria o que fazer com ela. Dona Doralice consentiu.

Os quatro menininhos, agora tímidos, postaram-se muito próximos da parede, um meio que se escondendo atrás do outro, sem saber o que fazer. Um deles, porém, em gesto rápido e espontâneo, descruzou os braços franzinos, olhou fixamente para a lente, levantou uma das mãos e fez o sinal. Com a boca, simulou o som produzido. Os outros imediatamente o copiaram. A senhora encapuzada, com sua gadanha sempre em punho, de modo ainda mais flagrante, deixava-se capturar nessa cena. Envergonhei-me do país que eu estava permitindo que se construísse. E fiz o que era justo fazer.

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