Pilar Quintana – A Cachorra

Romance é linguagem pura, ao menos para a escritora

Não é de hoje que se discute se o romance é uma obra de arte ou não. Isso pode soar estranho e se soa estranho é justamente porque ainda paira sobre o romance uma dúvida: qual sua função social? Ele é um objeto de arte a ser admirado ou é apenas entretenimento? Bem; não é objetivo desta coluna entrar nesse mérito, até porque sabemos que o conceito de “arte” (veja-se o mercado de artes plásticas, por exemplo) é móvel e tem abarcado até as ausências dos objetos ou coisas muito subjetivas como experiências sensitivas.

De todo modo, a crítica moderna que discute o romance (o que é, para que serve, como se produz, o que discute, etc.) há tempos lida com o romance como uma obra de arte, sim. Você pode retornar ao primeiro Lukács e verá isso discutido em Teoria do Romance, nos textos bakhtinianos escritos entre os anos 1920-1930 e só publicados nos anos 1970… E verá isso nos mais variados historiadores do romance, como o famoso caso de Moretti, mesmo que o definam como uma escrita que pode abarcar qualquer outra.

Algo que os une é dizer que o romance é móvel, que é uma das grandes marcas artísticas da modernidade e que vai se adaptando com incrível capacidade a novos tempos.

O que eu tenho discutido e defendido é que, justamente pela sua incrível capacidade de adaptar-se, de absorver outros discursos (formas e conteúdos), o romance corre riscos. Que se transformou num objeto de consumo capitalista, isso não é culpa dele. Qualquer coisa pode se transformar em objeto de consumo, mesmo o discurso mais anticapitalista. Mas o que tem ocorrido é o romance se transformar numa qualquer coisa escrita: basta um teclado, alguém que domina certas regras da construção textual e, voilà, temos um romance.

Algumas pessoas já me criticaram por imaginarem – erroneamente – que eu apenas defendo o romanção, o grande romance, aquele “que para em pé na estante” e que tem um trabalho complexo de pesquisa linguística. Não sei onde escrevi isso: muito pelo contrário, admiro os romances simples, os romances pequenos, os romances que conseguem um ponto entre a linguagem e o que ele pretende dizer justamente como objeto artístico. Mas, como a maioria dos pesquisadores elencados por Moretti, eu entendo o romance como um projeto artístico.

E daí surgem autores como Pilar Quintana, que são a prova viva do que eu digo. Guardadas as devidas diferenças, Quintana me lembrou muitas obras simples e de grande peso, como O Amante da China do Norte, de Marguerite Duras, e País das Neves, de Kawabata Yasunari. Mas mais ainda o primeiro do que o segundo. O primeiro, escrito numa linguagem lapidar, direta, quase fria, é uma das grandes obras-primas da literatura francesa do século XX, justamente uma língua que procurou o excesso e a exaustão (como resultados magníficos, seja com Yourcenar ou com Perec). O segundo, que levou anos e anos para ser construído, só teve o resultado que tem pelo incansável trabalho de Kawabata, que o reescreveu incansáveis vezes. Se Duras se vale das influências do cinema e se Kawabata se vale das influências do modo de se pensar a arte japonesa (procure o conceito de “katashi”, na arte japonesa), isso pode ser mera especulação. Já em Pilar Quintana, o que posso dizer é que sua “simplicidade” (que, em verdade, eu chamo de arrojo) dá muito certo porque ela foge de dois mecanismos enervantes da literatura atual: ela não tenta encontrar no todo da língua uma linguagem – de resto, falsa – para suas personagens marginalizadas e vulneráveis, e ela não romantiza a pobreza.

A personagem principal de Quintana, nesse livro, encontra uma cadelinha, que adota. O pequeno animal é tão vulnerável que precisa ser alimentado com um conta-gotas. O animal sobrevive, se torna um bicho de estimação da casa, mas, digamos, é um animal de rua. Claro que – e nem precisamos de ferramentas psicanalíticas aqui – a dona se vê no animal, ela se projeta nele. Órfão, frágil, precisando de um salvador… e um animal, um bicho. Mas o bicho, em sendo bicho, fugirá ao controle dela. O animal que ela tanto ama pode fazer algo que ela não pode: ter filhos. Ela, então, será e não será o animal. Como um ídolo, como um ícone ou como um totem, ela terá de tomar decisões difíceis. E o leitor verá onde isso vai dar.

O mais incrível desse livro pequeno é que, se eu dissesse que ali a verdade está em seu estado nu e cru, eu estaria mentido. Isso soaria como um livro em que a realidade é descrita do modo realista ou naturalista como nossos colegas de fins do século XIX buscaram fazer. Mas não é: e talvez por isso mesmo o livro de Quintana seja realmente incrível. Também eu não poderia dizer que é “um libelo contra o mundo capitalista”. Não é. Mas as relações entre brancos e negros – muito similares às do Brasil – estão ali, escarrapachadas para o leitor ver. A situação de uma mulher negra, com múltiplas camadas de vulnerabilidade (v. Florencia Luna) estão ali, diretas e retas, sem tempo para comiseração.

E também não há espaço para consolos fáceis, fúteis, risíveis.

A tradução está belíssima e ficou por conta de Lívia Deorsola, que escolheu muito sabiamente “cachorra” em vez de “cadela”. Em português, há uma diferença brutal entre os dois vocábulos, o que não ocorre nem na língua original, nem na tradução para o inglês.

Um belo livro: pequeno mas intenso, direto mas profundo, duro e sensível a um só tempo.

Sobre o/a autor/a

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