Se o Superman não existe, o preconceito sim

A defesa da “família tradicional” se baseia em um embuste. Não apenas inexiste um padrão de família, inclusive entre as homoparentais, como mesmo o modelo que se pode considerar hegemônico tem uma história e não existiu desde sempre

Deixemos de lado sofisticações teóricas sobre o poder da ficção, de instituir e interferir na realidade. O simples fato de que, na semana passada, reacionários e conservadores, religiosos em sua maioria, tenham inundado as redes protestando contra a bissexualidade do novo Superman – não o original, mas o filho desse –, anunciada pela DC, é evidência suficiente de que, às vezes, um desenho não é só um desenho.

A celeuma ganhou ares de cruzada, principalmente depois do jogador de vôlei Maurício Souza ser demitido de seu clube, o Minas Tênis Clube, após um tuíte onde reverbera o pânico moral que justifica a homofobia, dentro e fora das redes: “A é só um desenho, não é nada demais. Vai nessa que vai ver onde vamos parar”, tuitou o jogador em sua conta.

Ele não disse “onde vamos parar”, mas não precisa.

No discurso homofóbico, mesmo esses que, covardes, não ousam sair do armário, a insinuação é suficientemente clara. Nossa tolerância com um “desenho” é, sob essa ótica, apenas mais um passo para o desvirtuamento de uma sexualidade “normal” – e não apenas biologicamente, mas porque instituída, como vontade divina, desde a criação.

Em outras palavras, quando admitimos que personagens icônicos como o Superman exerçam uma sexualidade considerada anômala e aberrante, colaboramos para o desvirtuamento do que moralistas como Maurício Souza, consideram os pilares sobre os quais se assenta a “civilização Ocidental”, também não casualmente, tratada como realização sinonímia da cristandade.

Basicamente, aquilo que, nessa terra arrasada chamada Brasil, se convencionou chamar de “tradicional família brasileira”. A hipótese, se a palavra cabe aqui, é de que caminhamos, a passos cada vez mais largos, rumo a uma degradação que nos lançaria em uma espécie de abismo civilizatório caracterizado pela permissividade e a destruição dos nossos valores mais caros.

No fim da história, passaríamos a tratar como “naturais” o que não pode sê-lo, porque ofende a natureza e a criação. Como a homossexualidade.

(Uma nota, breve: a esquerda tem sua própria versão desse pânico moral. Nela, não se trata de uma ameaça à família, mas às bandeiras que realmente importam, as econômicas. Nesse discurso, os movimentos “identitários” e suas pautas – e que incluem, além do LGBT, o movimento negro e o feminismo –, substituíram a luta de classes por demandas individualistas, neoliberais, pós-modernas e, na sua versão mais extrema, fascistas).

Maurício Souza foi demitido do Minas Tênis Clube após tuíte onde reverbera o pânico moral que justifica a homofobia. Foto: Míriam Jeske/COB.

Precisamos de uma verdadeira família?

Mas a defesa da “família tradicional”, seja lá o que isso signifique para religiosos, conservadores e reacionários, se baseia fundamentalmente em um embuste. Durante séculos a noção de família, tal como a conhecemos hoje, inexistiu. No medievo, por exemplo, o indivíduo vivia “enquadrado em solidariedades coletivas, feudais e comunitárias”, segundo o historiador francês Philippe Ariès.

Um mundo que não era nem inteiramente privado e familiar, mas também não completamente público, pois ambos se confundem no cenário que antecede e que prepara a época moderna. O quadro não é muito diferente nos séculos subsequentes. As mudanças mais significativas acontecerão apenas a partir do dezoito. O “século das Luzes” vê consolidar-se uma família que vai, cada vez mais, concentrar boa parte das manifestações da vida privada, independente, inclusive, das classes sociais.

Num primeiro momento, ela substitui a comunidade, mas a tendência é que se transforme, rapidamente, em um lugar de refúgio, de afetividade e atenção – e não mais apenas uma unidade econômica, responsável pela sobrevivência material e física do indivíduo, como nos períodos anteriores. E é esta, em linhas gerais, a família que alcança os tempos atuais, a que chamamos, na falta de melhor definição, de “nuclear”.

E mesmo essa, como bem sabem leitoras e leitores, não é homogênea. A depender de inúmeros fatores, a família nuclear – uma invenção, portanto, além de Ocidental, recente – permite diferentes arranjos. Não apenas inexiste um padrão de família, inclusive entre as homoparentais, como mesmo o modelo que se pode considerar, em certa medida, hegemônico, tem uma história, e não existiu desde sempre.

Mas esse engodo atende a um outro propósito. Ele nada tem a ver com a defesa da família, e tem implicações bastante reais. É lamentável, em pleno 2021, ser obrigado a dizer o óbvio: nenhuma história em quadrinhos, vídeo, cartilha ou discussão sobre homofobia no ambiente público interfere na orientação sexual de alguém.

Mas discutir e prevenir a homofobia, pode contribuir significativamente na qualidade de vida de indivíduos cuja orientação sexual não é a hegemônica, diariamente expostos ao preconceito e às muitas formas de violência que ele comporta.

Uma violência física e simbólica

Somos, entre os países democráticos, um dos que mais discrimina e mata sua população LGBT. Segundo dados do governo federal, em 2018 – ano do último levantamento – foram quase 3 mil violações de direitos humanos contra LGBTs. As estatísticas se referem às agressões notificadas e, levando-se em conta a precariedade, as inúmeras dificuldades e mesmo o medo de registrar agressões sofridas, é provável que a incidência seja maior.

No ano passado, pelo menos 237 pessoas da comunidade foram assassinadas, vítimas da homofobia, de acordo com dados do Grupo Gay da Bahia. A violência é ainda maior entre trans e travestis: estudos da Rede Trans Brasil mostram que a expectativa de vida dessas pessoas é de 35 anos – enquanto a média brasileira é de 75. O índice de suicídios entre adolescentes e jovens gays é igualmente desalentador.

A pandemia aprofundou a desigualdade. O isolamento social afetou de maneira drástica parcela significativa da comunidade LGBT. Segundo dados divulgados pelo coletivo #VoteLGBT a partir de estudos de pesquisadores da Unicamp e UFMG, há um desequilíbrio no acesso à saúde, renda e trabalho entre LGBTs. Pessoas trans e travestis, novamente, estão entre os mais vulneráveis.

Mas a violência não é apenas física.

A homossexualidade ainda é vista e tratada como doença, inclusive por profissionais da saúde que pregam a “cura gay”. LGBTs são, com frequência, preteridos ou demitidos de seus empregos; constrangidos em lugares públicos e hostilizados quando demonstram afeto; expulsos do convívio familiar e de amigos; desrespeitados em ambientes públicos, inclusive em escolas, espaços de formação de cidadanias e cidadãos; ridicularizados por programas de humor e humoristas politicamente incorretos.

Em suas redes sociais, lideranças religiosas e políticas – incluindo membros da familícia presidencial – constantemente associam, às vezes de forma velada, em outras, mais abertamente, a homossexualidade à pedofilia.

Uma igualdade autoritária

Oscar Wilde foi condenado a trabalhos forçados acusado de “sodomia”.

Nas primeiras décadas do século XX, a Alemanha era uma das poucas sociedades ocidentais a manter, em relação à homossexualidade, uma postura tolerante. Um bom exemplo disso era a obsolescência do parágrafo 174 do seu Código Penal, que criminalizava a homossexualidade, na mesma época em que a Inglaterra condenava à prisão com trabalhos forçados Oscar Wilde, culpado do crime de “sodomia”.

A atitude alemã, liberal, sobreviveria até os anos de 1930, com a ascensão do nazismo ao poder, resultado de um avanço conservador que foi, entre outras coisas, reação a uma sociedade considerada por alguns como “degenerada”. Um dos efeitos foi uma perseguição desenfreada aos homossexuais, condenados muitos deles a amargar anos de sofrimento, humilhação e morte nos campos de concentração, onde eram identificados por um triângulo rosa costurado em seus uniformes.

No Brasil, e embora não seja recente, é um fenômeno que recrudesceu com o bolsonarismo, assistimos a escalada de uma política sombria, que atenta contra direitos e liberdades as mais elementares. Não é mera coincidência. O pânico moral foi sempre, e o século XX é testemunha disso, esteio de governos autoritários, que precisam dele para justificar a produção e eliminação – física e simbólica – de seus inimigos.

A cruzada de religiosos e conservadores contra a bissexualidade do novo Superman não foi um fato isolado, nem desimportante. Ela é parte de uma batalha que esses grupos travam contra o que chamam de “ideologia de gênero”, um espantalho conceitual brandido como pretexto para o ódio que nutrem contra LGBTs e suas demandas por visibilidade e direitos – incluindo o mais básico entre eles, o direito à vida.

No horizonte de expectativas, a utopia (ou distopia, se preferirem) de uma sociedade de iguais, no que a noção de igualdade tem de pior: intolerante, truculenta e autoritária. O horror, o horror.

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