“Ru”, de Kim Thúy, e a difícil classificação de obras literárias

No livro "Ru", Kim Thúy faz descrições diretas e cruas sobre sua família e a vida no Vietnã, na Malásia e no Canadá

“(…) uma mão esquecida já não é um gesto, mas um momento de amor, que se prolonga até o sono, até o despertar, até a vida cotidiana.”

Duas situações antes de comentar essas duas obras aparentemente díspares: a) você pode conversar com qualquer pessoa com mais de trinta anos no Vietnã e ouvirá uma história não muito feliz. Meu guia em Hanói contou que se casara com sua atual esposa para que pudessem unir a solidão de cada um. Eles não têm pais ou avós. Nem se lembram dos antepassados. Todos morreram na guerra, por causa da guerra, devido aos resultados da guerra, como é o caso de poços envenenados (ainda envenenados hoje) e minas terrestres. Seus filhos, ele disse, não tinham exatamente um passado. Algo que me marcou muito foi ele me dizer que “precisava construir uma história do zero”.

A segunda situação (b) nada tem a ver com a primeira, mas é importante para este texto. Se você toma o trabalho extremamente delicado e minucioso de um sujeito como Theo Jansen (ele fabrica mecanismos que “andam sozinhos” em praias ou outros locais, com a energia do vento), você considera arte o resultado de suas traquitanas? Veja que a pergunta é ligeiramente diferente se você se pergunta se o trabalho dele é artístico. Tendo trabalho dele por base a madeira (hilé), volta-se a uma velha discussão ocidental sobre técnica (tekné), artesanato, arte. É complicado mesmo. Em paralelo, você considera a “arte naïf” arte? Parece retórica a pergunta, certo?, até porque a palavra “arte” já aparece na expressão substantivo/adjetiva… E o que seriam os escritos fruto de um curso de “arte naïf”?

A classificação é e sempre foi absolutamente arbitrária. Se você lê a lista de mais vendidos dos grandes meios de comunicação, vai encontrar ali “Quarto de Despejo” como “não ficção”, mas ao mesmo tempo encontrará livros de crônicas como “ficção”. A classificação fica mais tensa quando se pergunta se “Quarto de Despejo” é uma obra literária… Lógico que é, e de uma qualidade inquestionável.

Tomemos essas duas pequenas e provisórias discussões: a tristeza das descrições do sofrimento do povo vietnamita e a difícil classificação (e posterior avaliação) das obras literárias.

Obviamente, as narrativas do meu guia vietnamita (feitas em espanhol, a língua mais próxima entre a gente) eram muito, mas muito tristes e sensíveis, mas não eram um produto literário. Você pode dizer que “há poesia ali”, uma poesia triste, ou que há algo literário, por uma série de aproximações que sua mente pode construir, mas não se trata de um texto literário (nem oral nem escrito). Mas pode — você há de convir comigo –  se transformar em grande literatura. Ficção ou não ficção, narrativa romanesca ou de memórias, o que o guia me contou pode se transformar em algo universal. Difícil dizer, difícil mesmo dizer, mas só ouvi histórias similares na África e em comunidades indígenas. Diga você onde viu/ouviu coisas tão medonhas.

“Ru”, de Kim Thúy

Mas eu ia falar de “Ru”, primeiro romance de Kim Thúy. A autora partiu com dez anos para o Canadá. Não viveu no Vietnã o crescimento. Escreve em francês. Sem querer comparar sofrimentos, ela não teve as mesmas experiências que meu guia teve. Mas sua história é incrível. As descrições diretas e cruas, o que ela conta sobre sua família, outras situações vividas no Vietnã, na Malásia e no Canadá dariam um incrível livro de memórias. Eu me emocionei em muitas partes. Mas qual seria o problema de “Ru”, aquilo que incomoda no ato da leitura, quando o leitor deixa em suspenso o inegável sofrimento do povo vietnamita? Sua irregularidade. Parece que a autora escreveu mensagens para ela mesma em post-its e os foi largando pela casa. Um dia ela resolveu juntá-los.

Veja: a coerência de um romance moderno há muitas décadas não é aquela dos manuais de definição do que seja romance ou seja novela (ou conto ou crônica), mas aqui a sinuosidade dessas “mensagens” é tão irregular que num certo momento você lê fofocas familiares e na página seguinte está lendo um relato arrepiante. Eu não diria que se trata de um romance e sim de um livro de relatos esparsos. Há trechos, também, típicos de uma pessoa que escreve apenas, mas sem habilidade de transformar a escrita em algo… literário.

Agora comparemos “Ru” com outro livro de tradução recente, “As inseparáveis”, de Simone de Beauvoir. Por mais que Beauvoir queira transformar em literário aquilo que não é (por exemplo um encontro furtivo) e por mais que Marguerite Duras tenha ironizado o fato de Beauvoir querer transformar tudo em algo universal e “para o futuro”, a relação que Beauvoir descreve entre duas meninas/mulheres é pura literatura. Ela mesma assume certa dificuldade que foi fazer isso (dada a proximidade com a pessoa descrita) e ela mesma conta de onde vieram as histórias narradas nesse romance: de sua própria experiência de vida. Há até uma introdução assinada “Sylvie Le Bon de Beauvoir”, em que a autora mescla os nomes dela mesma e da personagem. Talvez não seja a magnus opus de Beauvoir e talvez Duras estivesse enganada (afinal ela transformou a história de “O Amante da China do Norte” em algo de uma riqueza literária avassaladora), mas é uma bela narrativa (se você ignorar o começo um tantinho elementar) e um exemplo de como algo pessoal pode se transformar num rico texto literário.

A escritora Simone de Beauvoir. (Foto: Divulgação)

Há muito o que se dizer dos gêneros biográficos e autobiográficos. Eu mesmo não consegui lidar com isso nos cinco anos de doutorado. E nem o farei hoje em dia. Mas há riquíssimas histórias e experiências de vida que merecem um cantinho especial na nossa biblioteca, porque certas narrativas abertamente “não ficcionais” ou autobiográficas são muito requintadas e nem falo de Churchill.

Sei que não elogiei muito “Ru” e talvez não tenha sido tão generoso com “As inseparáveis”, mas eu levaria muito feliz para a praia. Aliás, eu faria o roteiro para um filme. Seria lindo. A delicadeza da relação de Simone com Andrée é muito marcante. Sinto muito por você, se você não teve uma amizade assim.

Livro

Ru“, de Kim Thuy. Tradução de Letícia Mei. Editora Âyiné, 220 páginas, R$ 64,90.

As inseparáveis“, de Simone de Beauvoir. Tradução de Ivone Benedetti. Record, 128 páginas, R$ 49,90.

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