José Pablo Feinmann e “A astúcia da razão”

Um dos romances argentinos mais importantes das últimas décadas, “A astúcia da razão”, de José Pablo Feinmann, mistura Hegel, Wittgenstein e Lacan

O biógrafo Ray Monk, ao analisar os aforismos de “Da certeza” (como aquele que diz: “Não se precisa de razões para duvidar?”), conclui que, embora Wittgenstein passasse pelo pior momento de sua vida, não imprime nesses escritos (coletados e publicados após sua morte, o que poderia ser um “terceiro Wittgenstein”), nenhuma autocomiseração, nada, aliás, do sujeito Ludwig, cidadão comum. Digamos que, em termos hegelianos, ele, conscientemente ou não, “elevou-se acima de um cidadão comum”, afinal Wittgenstein, pensando agora em termos hegeliano-feinmannianos, não era um sujeito comum e sim um “grande indivíduo histórico universal”, o oposto de Pablo Epstein, o herói de um livro estranho chamado “La astucia de la razón”, de José Pablo Feinmann. Epstein é o sujeito comum, engolido pela História e pelo “espírito de sua época”.

Bem; juntemos Hegel (de quem Feinmann retira o título desse romance de 1990, agora reeditado, com alterações), Wittgenstein e Lacan e teremos o arcabouço de “La astucia de la razón”, ou “A astúcia da razão”, ainda sem tradução no Brasil, a despeito de ser um dos mais importantes romances argentinos das últimas décadas.

José Pablo Feinmann

José Pablo Feinmann (1943–2021) era um escritor prolífico, com dezenas de romances e textos críticos. Teve um programa de filosofia na tevê argentina e, afora isso, era um músico bissexto e autor de diversos e premiados roteiros para o cinema.

“La astucia de la razón” é um romance complexo e difícil de ler, não tendo tido boa recepção lá pelos anos 1990 sequer na Argentina. Complexo e difícil de ler a partir da escolha linguística de Feinmann: o narrador permite ao herói uma fala compulsiva, que chega às raias da desintegração. Então, sugiro a leitura para leitores mais experientes com aventuras linguísticas…

Em seguida, porque o cenário em que se desenvolve o enredo abarca duas situações históricas da Argentina, o ano de 1964 e os anos 1975–1976, anos marcantes para a Argentina e para o protagonista Pablo Epstein: quando ele ainda era um estudante de Filosofia, tendo saído com amigos também estudantes para uma viagem em que vão discutir os limites da Filosofia, e por conseguinte da vida, e depois quando a Argentina passa por um golpe cujos mandatários sequestram e matam pessoas, com o conhecimento, digamos, de grande parte dos argentinos. Nessa segunda fase, Epstein descobre um câncer que precisa extirpar, lá pela região corpórea que matou Wittgenstein… ou seja, Feinmann constrói um romance em camadas de referências eruditas, anedóticas, nem sempre fáceis de reconhecer.

A vida de Epstein é uma analogia à situação da Argentina, eu diria “apoditicamente”, para manter o clima da escrita de Feinmann.

A astúcia da razão

O romance já inicia com uma anedota sobre a psicanálise: Epstein faz análise com um lacaniano. Ao contar que, na infância, seu pai haveria dito que “não morreria (enquanto o filho fosse criança)”, o analista conclui que o pai de Epstein o condenou ao parricídio. Epstein ironiza esse raciocínio definitivo e teatral do analista, cujo nome (Backhauss) é uma corrupção de “de volta para casa” ou “casa de retorno”, fazendo o leitor procurar pelas referências lacanianas “pai” (e norte), “casa”, “retorno” etc. Junte aí Lacan, Hegel e os limites da linguagem para a filosofia e terá um romance que vai dar trabalho. (Sei que talvez em alemão a anedota não seria a mesma, mas isso são outros 500.)

Assim como todo romance grandioso, a necessidade constante de se procurar referências eruditas para se entender a jocosidade atrapalha. Atrapalha porque exige um esforço de busca e, quando se descobre o conteúdo, uma vez que repetitivo, a piada perde a graça, ficando apenas a analogia. Então, tenha paciência.

De todo modo, é um romance que já merecia tradução e estudos sobre seu conteúdo, afinal se trata de uma obra sobre limites e dissipações: da psicanálise e do “eu”, da Filosofia e do sujeito, do sujeito e da História.

Las diferencias

Muito curioso observar, sempre, as diferenças entre o mercado argentino e o brasileiro. Já o disse aqui várias vezes e repito: os argentinos saem na nossa frente numa série de traduções, ainda preservam a tradição de grandes livrarias de rua, agrupam estantes e mais estantes de farta literatura por línguas e continentes (meio chocante comparar as estantes de literatura africana em Buenos Aires com a falta delas aqui…), e publicam livros para todos os gostos. No Brasil, a tendência atual é optar por literaturas mais “ligeiras”, a despeito, como já expliquei várias vezes, da importância dos temas. De todo modo, você vai encontrar nas estantes das livrarias argentinas Feinmann, Jordi Soler, Mariana Henriquez, Aramburo, Atxaga, Goytsolo, escritores de expressão em espanhol com uma escrita ricamente trabalhada, em diferentes estilos e gêneros.

Bem; não era muito o objetivo dessa coluna lidar com escritores ainda não traduzidos para o português, mas encontrei o livro de Feinmann na Estante Virtual. Vale a pena conhecer este escritor argentino.

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