O que seria da vida sem arte?

Num mundo que dá tanto valor à riqueza, vale perguntar: a que damos valor?

Quando esteve na Feira Literária de Paraty (FLIP), em 2015, a poeta portuguesa Matilde Campilho saiu em defesa da arte e foi copiosamente aplaudida por uma plateia apaixonada. “É preciso, sim, desenhar, é preciso fazer canções. A poesia, a música, uma pintura, isso não salva o mundo, mas salva o minuto”, disse a artista, arrematando: “A gente vai tentando salvar os segundinhos – da minha vida, da vida de todos meus amigos e de alguém que lê uma estrofe. E já é bom.”

O professor Rafael Ginane Bezerra, pós-doutor em Educação, vai além. Para ele, as ciências humanas salvam mais do que o minuto porque ajudam a formar o pensamento crítico e a desenvolver a tolerância, qualidades desejáveis dentro de uma sociedade, digamos, plural.

“O sociólogo norte-americano Peter Berger faz uma reflexão que considero válida para todas as disciplinas de humanas. Ele diz que elas nos ajudam a desnaturalizar, ou seja, compreender que não fazemos as coisas de certo modo porque a natureza manda, mas porque há uma espécie de programação cultural. Assim passamos a ser mais tolerantes com as diferenças. O mundo não é singular. É diverso”, defende.

Para tornar sua fala ainda mais didática – coisa de professor – ele recorre ao clássico Fahrenheit 451, um romance de ficção científica escrito por Ray Bradbury na década de 50. “A narrativa fala de uma sociedade do futuro onde os bombeiros, em vez de apagar o fogo, queimam livros e casas que ainda possuem livros”, conta. “O motivo? As pessoas chegam à conclusão de que a leitura serve como uma espécie de fonte permanente de inquietação. Quem lê muito não aceita as coisas como estão dadas.”

A sociedade criada por Bradbury é formada por cidadãos cujo foco está no trabalho e no entretenimento, nada mais. “Eles não querem se preocupar, por isso a reflexão que vem dos livros não é bem-vinda. Através dessa ficção científica, o autor nos ajuda a imaginar o que seria um mundo sem ciências humanas, sem artes. A resposta é relativamente simples: seria uma sociedade distópica, governada pelo totalitarismo e povoada por pessoas alienadas, com uma vida sem sentido.”

“O utilitarismo reduz as coisas a uma aplicação prática”, diz Bezerra. “Esse tipo de pensamento olha para as ciências humanas e diz que elas não servem para produzir riqueza, então não servem para nada.”

E cá entre nós: a que tipo de riqueza damos o devido valor?

“O caminho da sensibilidade”

Pedro Bonacin, 50, tem um desses currículos pomposos. É formado em odontologia pela Universidade Federal de Ponta Grossa (UEPG), fez dois anos de aperfeiçoamento e outros dois anos de especialização em odontopediatria pela Associação Brasileira de Odontologia de Ponta Grossa (ABOPG) e depois ainda fechou com um estágio na The Ohio State University, nos Estados Unidos. Ufa!

“Mas eu sempre tive comigo que era artista”, relembra. “Eu não sabia direito o que era isso, porque nasci na década de 70 e no interior. Eu sou de Andirá. Então, imagine qual era a referência de mundo que eu tinha…”

O jeito foi dançar conforme a música tocava, como dizem por aí. Ele começou a trabalhar aos 14 anos, depois se mudou para Ponta Grossa, onde fez o cursinho e o resto você já sabe. Foi fazendo o pé de meia. Mas na volta do exterior, tudo mudou.

“Um amigo me indicou para um desfile. O fotógrafo do desfile me indicou para uma agência. A agência começou a me mandar para teste de vídeo. Aí falaram que eu tinha que fazer teatro e me encontrei”, resume ele, que já é ator há 20 anos e também atua como diretor e arte educador no Pé no Palco.

“Depois da arte, eu passei a ver o mundo de forma diferente. Os meus olhos mudaram. Ganhei um senso crítico respeitoso. Hoje eu tenho consciência de que não posso mudar o mundo todo, mas posso mudar o meu mundo e isso já opera mudanças na minha casa, no meu local de trabalho e na minha vizinhança”, fala. “A arte ajuda a aprender a escutar, receber e expressar. Treina a nossa empatia. Como professor, eu me sinto ensinando o caminho da sensibilidade.”

“Pertencendo não a um sistema, mas à humanidade”

Raphael David Farias Moraes, 33, transita entre dois universos: o do direito e o da arte. E gosta do que faz. “A minha vontade de ser advogado vem da infância. Fiz uma simulação de júri na escola e depois a professora de história, de quem eu gostava muito, disse aos outros professores que eu era o novo advogado do Medianeira”, recorda-se. “Aquilo me encheu de orgulho e passei a ter esse sonho.”

Anos depois de receber uma formação de base que considera “integrada”, com acesso a peças de teatro e aulas de sociologia e filosofia, disciplinas das quais se lembra com afeto, ele passou no vestibular da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e, no último ano, descobriu que também queria ser ator.

Certo dia, passando em frente à Companhia dos Palhaços, parou para se inscrever em um curso, que emendou em outro e depois em outro…

Hoje, a rotina de Raphael é mais ou menos assim: nos dias úteis, ele trabalha com direito do trabalho, cível e familiar. Nas brechas entre um julgamento e outro, integra os elencos do Nariz Solidário e do grupo de teatro da Ordem dos Advogados do Brasil no Paraná (OAB-PR).

“Com a advocacia, eu sobrevivo. Com o palhaço, eu vivo. Por mais que eu tenha muito prazer em advogar, nada se compara ao prazer que eu tenho no exercício da arte”, diz com entusiasmo, resumindo o motivo de maneira brilhante: “Eu me sinto pertencendo não a um sistema, mas à humanidade.”

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