Pulsante, apesar de velha

Que mulher tão perigosa é essa que se autoriza a guiar seus demônios em direção ao seu próprio desejo?

Hoje não vou falar de arte.

Ao menos não como costumo fazer.

Mas queria propor a você uma imagem, um exercício. Pense no seu maior medo social. Complete a frase: “eu tenho medo de ficar ________” 

Agora pense na sua catástrofe projetada, essa mesma da qual você foge como o diabo da cruz. Desenhe-a nos mínimos detalhes, sinta o sabor amargo da sua humilhação pública. Como é a sua pior versão?

Esta semana, no meu curso sobre a história da representação das mulheres na arte, eu me encontrei com essa imagem. Contrariando todo o vasto imaginário produzido pela cultura que sempre nos ofereceu belos modelos físicos e morais a serem seguidos, lá estava aquela destinada a condensar o condenável ao escárnio em todas as suas versões: a velha bruxa.

Já há algum tempo eu venho estudando esses estereótipos, e já até escrevi um texto inteirinho explicando como eles são como a louça na pia, a poeira do rodapé: sempre haverá mais, lembra?

Bruxa do filme O Mágico de Oz (1939).

Mas calma, não é dessa bruxa velha que eu estou falando. Antes de mais nada, é preciso distinguir a figura das mulheres que foram perseguidas pela inquisição nos séculos XVI e XVII da bruxa norte-americana das festas de Halloween, com narigão e chapéu pontudo, amarga, ressentida, invejosa e vingativa. Não vamos falar dessa última, haja vista que já a temos embutida no nosso imaginário social. Esqueça os filmes da Disney. Falemos então desta velha bruxa europeia.

Albrecht Dürer, Die Hexe (1505).

Pra começo de conversa as bruxas perseguidas pela inquisição não eram amargas, desiludidas, mas mulheres lascivas, sexuais e nem sempre velhas. A bruxa aqui representada por Dürer é uma mulher viva, pulsante, apesar de velha. O vigor com que ela cavalga o diabo, esse bode que segura pelo chifre, os seus cabelos revoltos ao vento, a vassoura empinada ocupando o lugar do falo, denotam uma altivez, uma potência sexual ativa.

Que mulher tão perigosa é essa que se autoriza a guiar seus demônios em direção ao seu próprio desejo? Fixei-me nesse detalhe aparentemente contraditório: a persistência da sexualidade nessas mulheres velhas. Como pode uma velha ter tesão?

Se a luxúria (o sexo por prazer, além da procriação) já era condenável para as mulheres jovens, cujo único projeto social era o casamento e a construção de uma família, imagine como esse pecado seria muito mais grave quando atribuído à figura de uma mulher velha, infértil, que ousasse sustentar (e ostentar) sua libido publicamente.

Mas não era apenas de um desejo fálico, heterossexual, nessa cavalgada, que se alimentava o “fogo” dessas mulheres.

Capas dos livros História da Bruxaria: Feiticeiras, Hereges e Pagãs, por Jeffrey Russel e Imagens da Mulher no Ocidente Moderno: Bruxas e Tupinambás Canibais, por Isabelle Anchieta.

Essa gravura de Hans Baldung Grien está, talvez não por coincidência, na capa de dois dos meus livros sobre bruxas. Um, escrito por um norte americano, outro por uma pesquisadora brasileira. É preciso reforçar que centenas de gravuras em metal com o tema das bruxas foram produzidas em série e distribuídas massivamente por toda a Europa durante os séculos XVI e XVII. Entre tantas opções disponíveis, o que essa imagem em particular teria de tão especial?

Hans Baldung Grien, Hexen (1508).

Nela vemos um grupo de mulheres performando o ritual do Sabá. Se espremermos os olhos e tomarmos um pouco de distância, no entanto, veremos no centro dessa imagem uma zona escura em formato de uma vulva. Abaixo e também ao centro, está localizado um pequeno caldeirão, mais ou menos onde estaria um possível clitóris, que é “acariciado” por uma delas. Desse movimento contínuo, de repente: uma explosão. Seria esse jato um orgasmo? Seria ele o prazer o que propulsiona o voo da jovem bruxa no plano superior da imagem? Seria essa ativação sexual a fórmula da eterna juventude, o “veneno” lentamente preparado no caldeirão diabólico?

De um modo ou de outro, essas mulheres orgásticas representadas nessas gravuras não foram celebradas e sim condenadas à morte (assim como a sua homossexualidade). Essas gravuras, vale lembrar, sequer eram consideradas ou feitas para serem obras de arte, dentro do que hoje entendemos como um objeto de culto, destinado à exposição. Ao contrário das pinturas e esculturas que eram celebradas em sua eternidade, os estereótipos das bruxas eram anti-imagens, divulgados em livros apocalípticos de demonologia, ou impressos em panfletos destinados a consolidar sua desumanização e destruição massiva.

A pergunta que coloco hoje, então, é: quais as consequências dessa destruição? Porque, se pensarmos, com essas mulheres potentes queimadas exemplarmente em fogueiras, morremos também nós. Pergunte você às imagens que nos cercam: onde estão as mulheres velhas hoje?

A cultura provavelmente lhe trará à mente duas respostas imediatas: na primeira, estarão as mulheres velhas no cinema e na ficção, ocupando o lugar da vilã, da bruxa amarga americana. Ainda que por vezes ela seja uma figura relativamente bela, ela é fria, insensível, sua libido é voltada inteiramente para o mal.

A segunda personagem destinada às mulheres velhas é, claro, a vovozinha. Essa mulher conformada com seu próprio fim, sem nenhuma perspectiva de subjetividade, quase sempre com os cabelos curtos ou presos, desprovida de qualquer desejo próprio há tanto tempo que seu único olhar possível agora é em direção aos cuidados dos netos.

Rita Lee.

Perceba que, fora da figura da bruxa ou da vovozinha, em qualquer outro papel, a mulher velha raramente existe nas nossas imagens, sejam elas artísticas ou da mídia. Temos exceções? Claro. Haverá sempre uma ou outra Rita Lee para os representar, mas sempre e ainda ocupando o papel de “anormal” (porque fora da norma), uma ovelha negra, como ela mesma se cantou.

Ser uma mulher velha, na nossa cultura, é, então, ser uma mulher invisível.

E quando eu digo “velha” eu não estou falando necessariamente de belas senhorinhas centenárias no Japão, mas de qualquer mulher que tenha mais de 30, 40 anos. Sim. Esses dias eu fui debater um assunto e recebi como resposta algo como “isso é muito geração x”, “a geração y e z já não usa esses termos”. Oi?

Descobri então que, para muitas pessoas, sou uma mulher velha. E como tal, não só estou proibida moralmente de postar selfies e nudes como aparentemente não posso mais falar o que penso sob a acusação de obsolescência verbal ou conceitual. Se eu não posso existir como imagem ou palavra, então estou simbolicamente morta?

Mas peraí.

Eu tenho só 42 anos e uma enorme perspectiva de continuar existindo, publicamente, inclusive, como uma pessoa, pelos próximos 50-60 anos. Sim, meu sonho é morrer tal qual Niemeyer: com mais de 100 anos, famosa, comunista e estudando filosofia.

Mas a diferença entre nós é que Niemeyer era homem e, ao menos na nossa cultura, enquanto os homens podem deixar para pensar na morte (física) só quando ela estiver de fato próxima, nós mulheres somos levadas a carregar o peso dessa morte social iminente por toda vida adulta. Se homens grisalhos são celebrados em lives quando ainda estão no “auge” em seus aniversários de 80 anos, as mulheres começam a temer o fim da vida (social, sexual) logo após a gravidez ou com os primeiros sinais de menopausa.

Porque aprendemos com as imagens (ou com a ausência delas) que para nós não há vida plena depois dos filhos ou dos primeiros fios brancos. E dá-lhe creme anti-sinais, tratamentos anti-envelhecimento e programas de TV para nos ensinar a ficar “10 anos mais jovens”. Se você tem 30 anos e ainda não usa botox, desculpe, está atrasada.

Mas e se de repente envelhecer fosse celebrado, valorizado na nossa cultura? Vale lembrar que a outra opção para o envelhecimento é a morte prematura, não é mesmo? Quando falamos de representatividade na cultura não estamos apenas propondo inserir mulheres poderosas com cabelos brancos na publicidade para vender mais planos de saúde, ou creme dental, mas de ocuparmos papéis diversos e importantes na sociedade. E essa ocupação precisa se dar necessariamente através da imagem e da palavra sim. Porque imagem se combate com imagem.

Muito além de sairmos do armário dos filtros do instagram, é preciso interromper imediatamente o ensaio para o nosso melhor destino (já que ninguém quer ser a bruxa má): o da futura vovozinha feliz. Bora parar de ocupar o lugar da excelente-mãe-personal-organizer-cuidadora-de-tudo-e-de-todos? Ao invés de postar uma foto daquela linda lancheria com bolinhos de arroz saudáveis em formato de gatinhos que preparamos para o lanchinho da escola, que tal começar produzindo fotos de nós mesmas nos ocupando do nosso próprio desejo, por exemplo? Do que você e só você gosta? Pelo que se interessa? Que música escuta? Celebre seu corpo, eu sei que é difícil, mas celebre: suas marcas, suas manchas: conte com orgulho a história das suas cicatrizes.

Ensinemos às xófens que libido não é só sobre exibir lábios entreabertos, mas sobre ter tesão pela vida. (Falei tesão duas vezes, eu sei, geração x, fazer o que?)

Ninguém sem uma bela história é capaz de segurar seus demônios pelos chifres.

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