O brilho eterno de uma sociedade sem lembranças

Não acredito em nenhuma reparação histórica que se faça através do apagamento das violências que foram causadas ou sofridas, pelo contrário, insisto que elas devem ser condenadas a ser esfregadas na nossa cara e nos envergonhar eternamente

Há poucos dias acordamos com a notícia de que o Borbão estava em chamas. Desculpem a intimidade, síndrome de Estocolmo? Talvez. Afinal, quem cultivaria afeto ou se importaria em preservar a memória de um genocida indígena escravocrata? Pois é, mas aparentemente, o suposto “vandalismo” ofendeu muita gente. Quem são essas pessoas, do que têm medo, onde se escondem, o que comem? Deixo a resposta aberta para vocês, leitores, imaginarem.

Independente do que será dessa estátua, o ato de protesto incendiou muito mais do que os seus ladrilhos ou uma discussão sobre o seu destino. Atire o primeiro tweet quem não pesquisou “Quem foi Manuel de Borba Gato?” no Google, segundos depois de receber a imagem no seu feed.

No dia do incidente eu mesma defendi (e ainda defendo) que a estátua queimada deveria ser deixada exatamente ali, preservada em seu estado carbonizado, para que, justamente, as pessoas nunca deixassem de perguntar: “Quem foi esse cara?”

Disse e repito: retirá-lo do espaço público é grave. Não acredito em nenhuma reparação histórica que se faça através do apagamento das violências que foram causadas ou sofridas, pelo contrário, insisto que elas devem ser condenadas a ser esfregadas na nossa cara e nos envergonhar eternamente, tal qual Édipo que, em vez de se matar, cegou seus próprios olhos, vagando solitário com sua culpa até o último de seus dias.

Mas, a despeito dos meus dois centavos cibernéticos, logo descubro que o monumento será restaurado pela prefeitura de São Paulo, com o dinheiro de um “doador anônimo” (volte 4 parágrafos e tente responder à primeira pergunta. Correm boatos de que o benfeitor conserva um enorme pato inflável amarelo enterrado no porão de sua residência). Uma lástima para a memória do dia mais glorioso que esta estátua já viveu? Sem dúvida, mas a internet não perdoa, e já estamos elegendo a próxima intervenção.

Os créditos dessa extensa pesquisa de opinião pública vão para o perfil do Instagram do @newmemeseum, que tem se mantido firme no seu propósito de combater ficção com ficção. Você pode votar na enquete que permanece aberta aqui, onde até o extinto cocozão de Ponta Grossa entrou na dança. Aliás, um spoiler: ele foi misteriosamente incendiado em 2009.

Mas, além do humor, há outras estratégias para ressignificar a nossa herança. No Paraguai, a estátua do ditador Alfredo Stroessner foi retirada em 1991 de Assunção e “remodelada” pelo artista Carlos Colombiano. A estátua de Stroessner “esmagado” agora ocupa a Praça dos Desaparecidos.

Já a série “Monumento Editado” (2014-2017), do chileno Andres Durán, reúne fotografias de estátuas e monumentos históricos do Chile, Peru, Bolívia e Argentina. Digitalmente editadas e manipuladas pelo artista, nomes e títulos inscritos nos pedestais são removidos e um pedestal invertido esconde os rostos dos “heróis” homenageados.

Segundo o próprio Andres Durán, muitas dessas estátuas, construídas como representações de símbolos nacionais, tornaram-se obsoletas, dissociadas dos ideais políticos e sociais de grande parte da população. As imagens fictícias conferem assim um novo olhar a esses monumentos, provocando importantes questionamentos relacionados à sua presença nas cidades e na memória coletiva.

A pesquisadora e artista brasileira Isabela Vida Moreno também deu a sua contribuição com a série “Convide a deitar”, de 2021. Nesta colagem digital, ela justapõe uma fotografia de um cemitério com covas abertas em Manaus para abrigar os mortos pela Covid-19 em 2020, com uma imagem do Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret, de 1953. Pensar essas duas imagens e tempos justapostos nos força a estabelecer um significado comum a eles. O que as duas “obras” juntas comunicam? Teria um monumento que exalta o genocídio dos povos originários alguma pista para nos explicar as milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas no estado brasileiro que mais sofreu com a pandemia e que por “coincidência” abriga as nossas maiores reservas indígenas? Seria o genocídio brasileiro um projeto? Bingo.

Perceba, no entanto, que a justaposição aqui estabelecida só é possível porque temos um “Monumento às Bandeiras” para malhar. E não pela primeira vez. Em 2013, manifestantes jogaram tinta vermelha e picharam nele a frase “bandeirantes assassinos”. O próprio Borba Gato recebeu um “adereço macabro”, tendo sido rodeado de crânios em 2020.

Ainda sobre preservar os judas nacionais, quando a estátua do escravocrata Edward Colston foi arrancada de seu pedestal durante manifestação Black Lives Matter, na cidade inglesa de Bristol, Banksy (o artista anônimo mais famoso da Grã-Bretanha), publicou essa sugestão na sua conta do Instagram:

Em tradução livre, ele sugere: “Esta é uma ideia que atende tanto aqueles que sentem falta da estátua de Colston quanto aqueles que não sentem. Nós o arrastamos para fora da água, o colocamos de volta no pedestal, amarramos o cabo em volta de seu pescoço e encomendamos algumas estátuas de bronze em tamanho natural de manifestantes no ato de puxá-lo para baixo. Todo mundo feliz. Um famoso dia comemorado.”

Podemos também contar com a intervenção divina, como quando a réplica da Estátua da Liberdade da Loja Havan caiu, em maio deste ano, sendo atravessada por um poste, em Capão da Canoa. Poderia ser obra do “Movimento derrubacionista do nosso vento (levento?) popular”, mas foi só o vento.

Mas de todos os monumentos ou, melhor dizendo, os contramonumentos que já estudei, um dos que mais me tocou foi este, projetado por Esther Shalev-Gerz e Jochen Gerz em Hamburgo, na Alemanha, em 1986. O “Monumento Contra o Fascismo” consiste de uma coluna de 12 metros de aço, cujas faces são revestidas de chumbo. Na época de sua instalação, os transeuntes foram convidados a marcar naquela superfície o seu protesto contra o fascismo, enquanto pouco a pouco a coluna se afundava no chão, desaparecendo lentamente aos olhos daqueles que se acostumavam, em vão, com sua presença.

Esther Shalev-Gerz e Jochen Gerz, Monumento Contra o Fascismo (1986).
Esther Shalev-Gerz e Jochen Gerz, Monumento Contra o Fascismo (1986).
Esther Shalev-Gerz e Jochen Gerz, Monumento Contra o Fascismo (1986).

O monumento se faz então, além de aço e chumbo, de palavra, tempo e memória. Subvertendo os obeliscos egípcios e as colunas romanas, sua castração progressiva toca diretamente o imaginário fálico, nos fazendo buscar a figura do herói que, nele, só pode ser desmentida: a cada assinatura que resiste, um pouco da sua rigidez afunda. O que resta, ao final, além de um quadrado no chão, é o topo da coluna, um texto traduzido para sete idiomas e a lembrança de que sobre ele não devemos erguer outros, jamais.

Em uma das suas “Teses Sobre o Conceito de História” (1940), Walter Benjamin nos deixou o aviso de que “O dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer”.

E se o inimigo não para de vencer, pergunto: quem somos nós que não desistimos de sobreviver?

Por isso, defendo (e peço perdão pela insistência) que resistir não é sobre vencer. É sobre lembrar que não devemos erguer no lugar do inimigo nenhum outro herói, sob o risco de sermos por ele novamente esmagados. Pois, como nos alerta Didi-Huberman, quando defende a importância da breve luz dos seus vaga-lumes: “não haverá resposta dogmática (…) nenhuma resposta geral, radical, toda. Haverá apenas sinais, singularidades, pedaços, brilhos passageiros, ainda que fracamente luminosos”.

Que o brilho das chamas de cada ato de resistência continue a nos incendiar eternamente.

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