Vida longa à Trajano Hells

A rua continua obedecendo ao seu fluxo criativo-destrutivo, parte de sua vocação indelével desde tempos primórdios

Toda grande cidade tem uma rua, ou um conjunto delas, que parece ter vida própria. Seja toda sorte de história e vadiagem que possa caber dentre a Avenida Mem de Sá e a Rua Riachuelo, na Lapa carioca, ou da descendência paulistana de sua avenida mais proeminente, a Avenida Paulista, até o centrão decadente, pela famigerada Rua Augusta, há lugares da urbe que pulsam vida e morte próprias. Complicadas, amadas e odiadas, essas ruas delimitam territórios notórios, acolhem indivíduos notáveis, criam histórias próprias ou servem de pano de fundo para muitas outras. Aqui, na casta e pudica capital dos pinheirais, não poderia ser diferente, e para a minha primeira coluna de 2022 (que nos trate melhor, por favor), começamos por ela, a ressurgente Trajano Reis, que muda um pouquinho de cara mas continua obedecendo ao seu fluxo criativo-destrutivo, parte de sua vocação indelével desde tempos primórdios.

Inauguralmente Rua do Cemitério, substituiu a via lamacenta que ligava a antiga Igreja do Rosário ao Cemitério Municipal. Permeada de armazéns secos, açougue e comércios diversos, ainda seria conhecida como Rua América, até levar o nome de um de seus proeminentes moradores, Trajano Reis, médico sanitarista maçom, no ano de seu falecimento em 1918. Portanto, o fluxo, a passagem, é parte integrante desta curta rua do centro. A via, em seu trajeto de sobe e desce, de yin yang geográfico, ainda reflete simbolicamente a elipse vital entre a celebração de casamentos e batismos, nas igrejas do Largo da Ordem, em um de seus extremos, e, os ritos fúnebres no outro, acerca do Cemitério Municipal.

Essas idiossincrasias vão sendo refletidas na forma de uso deste espaço público. O fluxo, o caminhar, o parar de bar em bar, nas últimas décadas tem sido a ordem proposta pelos citadinos que ali escolhem passear. Há pouquíssimos anos, anteriores a pandemia, manifestações festeiras sopravam a música que pairava no ar em vários pontos do caminho, se misturando ao farfalhar de sons noturnos, tilintar de garrafas e ocasionais oferecimentos relativamente cordiais de drogas ilícitas, a partir de certo horário. Muita gente na rua, o jovem, o punk, o hippie profissional, o músico e toda sorte de transeunte compunha o ir e vir entre os bares, na rua semi bloqueada pela multidão.

José Araújo Neto, proprietário da rede Pork’s.

Como não poderia deixar de ser, a via, rebelde, se nega a conformar-se aos planos que a administração da cidade tem para ela. Batidas policiais, multas altas, e muitos “choques de ordem” tentaram, nos últimos anos, e muitas vezes em vão, negar aos pedestres sua livre fluência e aos bares a emissão de seus decibéis. Não que o ir e vir seja de todo inócuo: drogas, álcool, confusão, tráfico, assaltos e outros tipos de colateralidades boêmias também não são raros. Todos esses problemas, somados aos dois últimos anos terríveis tanto para o comércio quanto para a convivência, fizeram com que o formigueiro humano do Centro Histórico, se esvaziasse e inúmeros empreendimentos fechassem, fazendo com que o ruído das noites desse lugar a um silêncio atípico, por quase dois anos.

Mas como não há tânatos sem eros, pulsão de morte sem vida, e ir e vir na Trajano, novos bares vêm surgindo e junto com eles uma nova cara, neste primeiros meses de pandemia menos letal.  “A Trajano é isso, um espaço onde as pessoas gostam de circular entre os bares, usando o espaço público para entretenimento.” Me conta José Araújo Neto, empresário, dono da rede Porks, que ali inaugurou uma casa há poucos meses, em um dos imóveis antigos e típicos do centro da cidade. “Ela (a rua) vem voltando a ser um ponto de encontro da juventude por sua pluralidade de bares, o movimento está grande novamente e promete uma temporada de verão com ocupação das calçadas pela galera” , completa com otimismo o dono da marca.

A Trajano possui uma cena de baixa gastronomia excelente. Variedade, preço acessível, linguagem jovem, frequência plural e democrática, acertam no ponto de equilíbrio que negócios mais diretos e com estruturas menores, precisam ter para florescerem em meio aos desafios econômicos austeros do Brasil em que vivemos. “ A Trajano é um símbolo da diversidade em Curitiba. Uma rua que acolhe demais todos os públicos que frequentam cada estabelecimento. E é um espaço super democrático, visto que, em sua maioria, os estabelecimentos são abertos para a rua, para o jovem poder se divertir sem gastar fortunas, sem ter que pagar entrada de algum local, a rua iguala todo mundo”, ratifica Fernando de Souza, sócio proprietário do Venice Carnes e Chopes, uma das opções de comida para os famintos notívagos.

A rua está mais calma, seja por ainda estarmos num período de férias, seja pelos efeitos do distanciamento, seja pelos assombros novos e constantes da pandemia, isso é verdade. Porém, a julgar por sua última experiência, o Wonka, de Ieda Godoy, que reabriu as suas portas neste começo de ano, vem para nos lembrar que pode ser somente um pequeno silêncio que preceda um grande esporro. Fundado originalmente em 2005, tendo funcionado até 2016, o bar foi um sucesso e catalisou a vocação boêmia da rua tal como a conhecemos hoje. Isso tudo parece estar querendo se repetir. “O fato de nós termos ficado esse tempo todo distantes, eu acho que aumentam as expectativas para um retorno feliz, um retorno saudável, um retorno à vida mesmo, né? Então as expectativas são as melhores”, me confessa a exultante empresária.

Sobre o icônico endereço, Ieda me conta: “Eu tenho um amor por essa casa, ela chegou para mim muito naturalmente em 2005. Na época, a proprietária, que frequentava o Mafalda (outro empreendimento da dona do Wonka), estava com a casa desocupada, e me perguntou se eu não queria pegá-la.  Quando cheguei, senti uma coisa muito forte. Eu me encantei quando comecei a pensar em tudo que eu poderia por ali. Aceitei e o Wonka acabou sendo um sucesso. Agora, depois desse hiato, de cinco anos e meio, longe dali, novamente a casa me foi oferecida. Tudo isso fez com que eu quisesse o Wonka de volta.”  E completa, “eu acho que o Wonka só faz sentido ali. Eu não acho que o Wonka funcionaria em outro endereço.”

O bar reabre com muitas noites temáticas que vão do samba ao rock, passando pelo jazz e brasilidades, o cardápio também foi reinventado e a dona do Wonka quer ainda muito mais. “Eu acredito que em breve a gente já vai estar com a corda toda. É para isso que eu trabalho: para que as coisas aconteçam. Quero um monte de gente lá no bar, quero fazer muitos shows, quero que muita gente nova apareça, quero que muita gente das antigas apareça também. Tô ali de portas abertas e coração aberto para receber as pessoas e para fazer acontecer” conclui, Ieda.

Ieda Godoy, prpprietária do Wonka Bar. Foto: reprodução/Facebook do Wonka Bar.

O futuro ainda é incerto mas as expectativas e vontades são grandes. A mesma rua que observou tantos problemas e mortes simbólicas, preenche o vácuo criado com o seu fluxo de renovação vocacional secular. Que suas iniciativas acolham novamente a multiplicidade de curitibanos que ali se encontrem ou se percam, e quem sabe, a subida e descida da resistente via, ensine à cidade de Curitiba, e alguns de seus habitantes, que se perder de si, também é se encontrar.

Vida longa à Trajano Hells…

Como não poderia deixar de ser, a via, rebelde, se nega a conformar-se aos planos que a administração da cidade tem para ela. Batidas policiais, multas altas, e muitos “choques de ordem” tentaram, nos últimos anos, e muitas vezes em vão, negar aos pedestres sua livre fluência e aos bares a emissão de seus decibéis

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