Há saída para a violência?

Há que se ter coragem para assumir, em espaços conservadores como o Poder Judiciário, posturas contramajoritárias como as que propõe a Justiça Restaurativa

O publicitário Washington Olivetto disse em uma entrevista para uma rádio brasileira durante uma tarde pandêmica que: “as pessoas sabem o que querem, mas também querem o que não sabem”.

Toda vez que reflito sobre criminalidade, redução de violência, prisões, crimes e castigo, essa frase me toma. Porque acredito sinceramente que, sobre esses assuntos, as pessoas querem o que não sabem.

É anseio antigo e perene dos seres humanos viver em paz. Quando atos violentos acontecem somos invadidos por muitos sentimentos: de indignação, raiva, desejos de vingança. Ao fim e ao cabo, todos eles podem ser traduzidos em um só: medo.

Temos medo de também sofrer com a violência. Não sabemos o que fazer com quem comete atos violentos. Seguimos a cartilha antiga, aquela que não paramos para questionar, a falácia de que sofrendo as pessoas irão aprender a nunca mais fazer alguém sofrer.

Ao que parece, isso não anda funcionando. Nem por aqui, nem em nenhuma outra parte do globo terrestre. Mas não há outro caminho. Vamos retribuir o mal com o mal. É só o que temos. Será?

Permeados pelo esquema punitivo de viver, adestrados no binômio da punição ou recompensa: se fizer certo, será premiado; se fizer errado será castigado, seguimos.

Quem menos sabe da água é o peixe e, o viver dessa maneira é para nós tão natural que, quando perguntados sobre se a punição nos é ensinada ou é inerente ao ser humano, não raro defendemos que já nascemos sabendo seu mecanismo.
Contudo, a punição é limitadora da consciência e, por conseguinte, da possibilidade de se alcançar uma mudança.

Isso porque é algo que vem do exterior, normalmente aplicada por outra pessoa e está sempre ancorada nos opostos recompensa ou castigo. Trata-se de técnicas de adestramento, o que a filósofa Lucia Helena Galvão denomina de ética por coerção.

Faço porque sei que, se não o fizer, sofrei uma punição, não há convicção em mim de que devo agir eticamente. Essa forma de ensinar pessoas possui sustentáculo muito frágil, e é, da mesma forma, ineficiente quando se trata de autores de crimes.

Observando o índice de reincidência criminosa em nosso país, que conforme inédito relatório divulgado pelo DEPEN em 2022, vemos que 42,5% das pessoas voltam a cometer crimes, sendo que perto de 23,1% dela cometem outros delitos no primeiro ano após saírem do Sistema Penitenciário.

Ou seja, a pesquisa faz sucumbir a ideia de que permanecendo preso sofrerá e alterará seu comportamento, para não mais cometer atos antissociais e ou violentos.
Mas então, qual caminho pode haver, para longe da punição, já que as pessoas precisam entender que causam danos aos outros e, devem ser responsabilizadas por isso?

Há 10 anos, conheci a Justiça Restaurativa, uma nova maneira de enxergar conflitos e tratar atos violentos. Enxerguei um caminho, mudei de rumo, mudei de discurso, voltei a acreditar na minha profissão como vetor transformador da sociedade.
Responsabilizar-se é diferente de receber uma punição. Em si, as ações já são distintas. O primeiro verbo é reflexivo, é algo que você atinge, internamente, uma ideia que vem de dentro para fora. A punição é externa, recebida, passivamente e que, por muitas vezes, não gera qualquer reflexão.

Ao contrário, quando a pessoa punida recebe tratamento indigno do Estado, passa imediatamente de autor à vítima de violência e, vai-se embora a ilusão de que se responsabilizará pelo que fez, que refletirá pelo mal que causou.

O discurso parece estar muito longe da vida como ela é. E está. Ainda somos violentos e buscamos respostas também violentas para atos antissociais. Há violência em nossos relacionamentos familiares, escolares. Também há violência na atuação dos órgãos de Segurança Pública do Estado, bem como em atos do Poder Judiciário. A violência não perde sua essência apenas por ser praticada por agente estatal.

E, para todas essas atitudes vale a mesma máxima, retirada de ensinamentos da Física: mais com mais nunca dará menos. Saber disso é frustrante na maioria das vezes, pois continuamos acreditando, talvez por não muito refletir, que mais violência nos trará um mundo com mais Paz. Voltamos à frase que abre o texto: não sabemos o que queremos, ou talvez, não fazemos as escolhas certas para chegar onde queremos enquanto sociedade.

Apostar na responsabilização, num movimento inédito onde o Judiciário assume papel de educador, no sentido amplo da palavra, proporcionando aqueles e aquelas que praticaram atos antissociais experiências onde deverão refletir sobre as violências que praticaram e, a partir do despertar da consciência possam decidir, por si só, agir diferente e mais que isso, decidir reparar o dano, restaurar relacionamentos. Sonho distante? Nem tanto.

Desde 2014, o Poder Judiciário do Paraná vem apostando nessa nova ideia, na Comarca de Ponta Grossa, onde atuo junto ao Centro Judiciário de Solução de Conflitos, há hoje 18 projetos que utilizam os Princípios da Justiça Restaurativa para tratamento de conflitos de toda sorte, apostando no diálogo, no ser humano e na crença inafastável de que a mudança é a única certeza que temos. E que isso vale, especialmente, para pessoas. Nas palavras de Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas: “Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando”

Pode surgir a dúvida: mas se não funcionar? Ora, já estamos tratando com a falência do que andamos fazendo. Não há quem possa afirmar que o tratamento destinado pessoas que cometem atos antissociais e/ou violentos seja adequado. Há inclusive a palavra final de nossa Corte Constitucional, que julgou ação na qual textualmente afirma haver: “um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro”. (ADPF 347). Mesmo assim, continuamos. Albert Einstein tem uma frase para isso: “Insanidade é continuar fazendo a mesma coisa e esperar resultados diferentes”.

Há que se ter coragem para assumir, em espaços conservadores como o Poder Judiciário, posturas contramajoritárias como as que propõe a Justiça Restaurativa. Contudo, quem trabalha no dia-a-dia do Sistema de Justiça Criminal percebe a necessidade de termos outras respostas para além das que hoje possuímos.

Ainda estamos muito longe de prescindir da punição, tal como hoje utilizamos, como resposta, nem é isso que propõe a Justiça Restaurativa. O que se quer e, o que a experiência exitosa que há 10 anos acompanho demonstra ser possível, é tornar atuação do Judiciário menos automática, mais voltada para cada caso, levando em consideração as necessidades da vítima, tantas vezes excluída do processo penal, tomada como mero meio de prova, sem qualquer voz sobre o que realmente a ela importa. É uma aposta corajosa no ser humano, mas voltando a Guimarães Rosa, “o que a vida quer da gente é coragem”. Sigamos.

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