São dois os tipos de pessoas segundo as quais o Brasil vive uma ditadura. Há aquelas que sabem que não estamos, mas ganham poder e, eventualmente, grana, alimentando e reproduzindo a mentira. E há aquelas que gostam, pedem, precisam ser enganadas pelas primeiras. O primeiro grupo é de gente desonesta e mentirosa; o segundo, de uma maioria orgulhosamente ignorante.
Ambos estavam representados na manifestação do último domingo, que reuniu cerca de 30 mil pessoas em Copacabana, no Rio de Janeiro. Os primeiros, discursaram no palanque; os segundos aplaudiram Elon Musk, talvez satisfeitos com a expectativa de um país com mais testosterona.
Mesmo bem menor que o de fevereiro, em São Paulo, que reuniu quase 200 mil pessoas na Avenida Paulista, não se pode subestimar o ato desse último final de semana. Ele serviu para, pelo menos, duas movimentações, além da habitual tentativa de blindar Bolsonaro, transformando-o em uma espécie de “mártir” em caso de uma eventual prisão, no que a escolha do 21 de abril como data para a manifestação foi simbólica.
Primeiro, deixa claro que a extrema-direita está de olho nas eleições desse ano, e se preparando ativamente para elas. Enquanto parte da esquerda continua a tratar os pleitos municipais como secundários em relação às presidenciais, a direita aprendeu que o que acontece nas cidades, e não apenas nas grandes cidades, não é apenas um “puxadinho” do que ocorre em Brasília e no governo federal.
Há o fato, incontornável, de que muitas das decisões tomadas a nível local repercutem, mais rápida e diretamente, em nosso cotidiano. Mas, além disso, o fortalecimento de uma agenda política, seu espraiamento e a mobilização para fortalecê-la passa, necessariamente, pelos municípios, justamente pela maior proximidade entre o poder local e a população.
E isso é verdade para as bandeiras progressistas e democráticas, mas igualmente para a agenda autoritária da extrema-direita. O que me leva ao segundo movimento.
Já se passaram quase dois anos da derrota eleitoral de 2022, e nem por isso se pode dizer que o bolsonarismo esteja enfraquecido. Quem acompanha os noticiários, a agitação das redes sociais ou os debates parlamentares sabe que é, justamente, o contrário. Nem a tentativa frustrada de golpe em 08 de janeiro de 2023 e a sequência de revezes judiciais, conseguem esmorecer a extrema-direita.
No Congresso Nacional, por exemplo, a atuação de parlamentares próximos ao bolsonarismo é exemplo dessa capacidade de mobilização que se alimenta das e retroalimenta as seitas de militantes fanatizados organizadas a partir da identificação e do alilnhamento ao bolsonarismo. É para a manutenção e o fortalecimento dessa capilaridade, que não está restrita ao mundo virtual das redes, embora nele encontre ressonância, que os atos de fevereiro e do domingo serviram.
Apenas nas últimas duas semanas a atuação coordenada e articulada das bancadas da bíblia, da bala e do boi no Senado e na Câmara aprovaram, em comissões, a criminalização do porte de drogas; mudanças no direito à saída temporária de presos; restrições para que ocupantes de propriedades rurais e urbanas recebam benefícios do governo e a autonomia dos estados para legislar sobre o porte e uso de armas.
Além disso, enterraram o PL que regulamentava as plataformas digitais, um tema que, apesar da urgência, voltou à estaca zero. E, de quebra, conseguiram transformar em debate a tentativa espúria do Conselho Federal de Medicina de interferir na legislação, ao aprovarem uma moção de apoio à resolução do CFM que pretendia vetar o aborto em vítimas de estupro, autorizado pelo Código Penal brasileiro desde 1940.
São temas que mobilizam a extrema-direita, ainda que por razões distintas, seja por dinheiro, poder ou medo, tanto faz. E que, particularmente no caso de militantes e eleitores, conquista e assegura sua adesão nutrindo paixões como o ódio e o medo, em política, complementares e fundamentais à mobilização e ao engajamento militante.
É porque sabem disso que as lideranças políticas de extrema-direita insistem em disseminar aquilo que elas sabem que é mentira, seja a “mamadeira de piroca”, a “ideologia de gênero” ou, em sua versão mais recente, a tirania do governo Lula e do STF e as ameaças à “liberdade de expressão”.
É patético, sei. Mas embora essas mentiras, mesmo repetidas muitas vezes, não se tornem necessariamente verdade, nem por isso deixam de produzir efeitos bastante reais.
Quando a extrema-direita vai às ruas aplaudir um bilionário criado sob o apartheid sul-africano e falar em nome da segurança e da liberdade, é tudo mentira. Não é sobre segurança, tampouco liberdade, mas sobre ameaçar e constranger quem pensa e é diferente. É sobre fortalecer o fascismo e armar os fascistas.