MST, o movimento que enfrentou os donos do poder

O nosso colonizador, sistematicamente, através de séculos de conflito armado, foi bem sucedido em reprimir as revoltas populares. Mas pela primeira vez isso não funcionou

O nosso colonizador, sistematicamente, através de séculos de conflito armado, foi bem sucedido em reprimir as revoltas populares insurgentes de sua história. De Tamoios a Palmares, de Inconfidentes a Canudos, há na gênese do Brasil a afeição à reprimenda fratricida, que em tempos recentes, ainda é refletida no seu habitus social. Uma análise a partir do prisma do colonizado, e não do colonizador, como nos foi ensinada a história, deixa claro que no país, este projeto lusitano, o levante civil reivindicatório é sempre reprimido fortemente pelo estado militarizado. Há séculos é assim, e no passado recente não poderia ter sido diferente.

Outro vício da sua organização econômica é o latifúndio monocultor, hoje representado de fato e subjetivamente pelo Agronegócio. Este que já foi tema desta coluna inúmeras vezes, seja pelas suas características opressoras, seu projeto de fome ou sua mentirosa propaganda desenvolvimentista, recebeu, durante a ditadura militar (tal qual uma legítima campanha imperial portuguesa de ajuda à capitanias hereditárias), subsídios, para consolidar-se como o vemos hoje. De forma bastante desigual, a ditadura modernizou a produção latifundiária, excluindo o pequeno e o produtor familiar, impulsionando o êxodo rural, além de intensificar o uso de venenos agrícolas, por conta do foco dado à produção de commodities para o mercado internacional.

Como o bom e velho pêndulo histórico nunca falha, em resposta às ações dos militares, aqui mesmo, neste Paraná reacionário de hoje em dia, surge, em 1984, o MST – Movimento dos Brasileiros sem Terra – reivindicando o que historicamente o governo nega a sua população: o direito sobre a terra. Posseiros, atingidos por barragens, migrantes, meeiros, parceiros e pequenos agricultores, decidem no seu primeiro encontro nacional, na cidade de Cascavel, oeste paranaense, fundar o movimento camponês nacional, com três objetivos principais: lutar pela terra, lutar pela reforma agrária e lutar por mudanças sociais no país. Em 1985, já no seu primeiro congresso, constrói-se o justo lema de “Terra para quem nela trabalha” e estabelece-se a ocupação das terras improdutivas como meio de contenda.

É claro que o que se viu posteriormente, na medida em que o movimento avançava também em outros estados, foi a mais dura repressão. O projeto latifundiário se mostrava mais uma vez, muito mais poderoso que os anseios da população. Porém, em 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã, e não sem o esforço de milhares de militantes do movimento, através dos artigos 184 e 186, abre-se precedente jurídico para ocupação de terras devolutas em território nacional. Criando-se aí, e pela primeira vez, uma brecha para interrupção do projeto colonizador de outorga e grilagem latifundiária dominante.

“Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Na medida em que a reivindicação sem-terra virava lei, houve o arrocho das políticas neoliberais do governo Fernando Collor de Mello e mais repressão, além do seu óbvio não cumprimento legal. Até que, de acordo com a entidade, no governo de Fernando Henrique Cardoso, aconteceu o total abandono da agricultura familiar e os dois maiores massacres da história do movimento: Corumbiara (1995) e Eldorado dos Carajás (1996).

Este segundo ocorreu após uma ocupação de 1995, onde 3.500 famílias de trabalhadores rurais, organizadas pelo MST, acamparam próximas a uma fazenda que reivindicavam desapropriação, por se tratar de uma área improdutiva. Em 1996, as famílias decidem adentrar a área e as negociações começam com o Incra, que havia declarado a fazenda produtiva, contrariando a posição dos sem-terra que diziam que o laudo que o atestava havia sido conseguido através de suborno das autoridades do Pará. Infrutíferas negociações e quebras de promessas fizeram com que 1.500 famílias iniciassem uma marcha até Belém (a 800 km de distância). Perto da municipalidade de Eldorado dos Carajás, o grupo foi cercado e atacado por 155 policiais, sem identificação pessoal ou de suas armas, que executaram 21 pessoas e feriram outras 56. Houve tiros na nuca, dilacerações à foice e até a decapitação de uma pessoa, que teve a cabeça estraçalhada.

Já de volta ao estado berço do movimento, o Paraná, as coisas também não andavam fáceis. Na época, Jaime Lerner era o governador e foi protagonista de uma dura repressão aos sem-terra do estado, inclusive captada no documentário “Arquiteto de Violência – Anos de Chumbo do Governo Jaime Lerner”, onde a sua administração é acusada de cooptação da polícia, desrespeito aos direitos humanos, execuções e torturas. Em junho de 1999, em protesto contra as arbitrariedades, violência e o descaso na negociação das áreas de ocupação, trabalhadores sem-terra acamparam na Praça Nossa Senhora da Salete, no Centro Cívico em Curitiba, como forma de protesto e reivindicação dos seus direitos.

“Fizemos um acampamento que tinha mais de mil e quinhentas pessoas no início. Nos organizamos com barracas de lona na frente do Palácio Iguaçu. Ali fomos criando uma vida coletiva. Além das moradias tínhamos a escola, que mantivemos funcionando durante todo esse período. A gente fez uma estufa de produção de verduras orgânicas. Trabalhávamos também com a nossa farmácia viva, composta por remédios naturais e plantas fitoterápicas. Montamos uma padaria onde fazíamos pão caseiro. Estes dois últimos, eram vendidos também para as pessoas que trabalhavam por ali. Tivemos bastante contato para conversar com a sociedade através deste espaço. As pessoas vinham visitar a escola, as estufas e a nossa organização, neste espaço coletivo que nós ficamos no Centro Cívico”, me conta Sandra Mara Mayer – que hoje é coordenadora do Assentamento Contestado, pedagoga e educadora na Escola Municipal do Campo Contestado.

Apesar das negociações terem progredido e o MST ter prometido sair do Centro Cívico brevemente no dia anterior, em 27 de novembro daquele ano, a polícia, com um efetivo de aproximadamente mil policiais, começou o despejo das pessoas ainda na madrugada. “Eu estava lá neste dia, às duas horas da manhã eles bradavam ordens para que nos abaixássemos ou eles iam atirar. Estávamos dormindo, entraram barracas adentro com armas em punho, gritando, com cachorros, nos arrancando das camas. Depois nos enfileiraram e fizeram com que deitássemos no chão com a barriga para baixo. Foi muita violência. Inclusive, uma moradora do Centro Cívico chamou o pessoal da igreja católica para que eles pudessem tentar negociar com a polícia e chamar mais pessoas da sociedade civil para presenciar o que estava acontecendo. Isto aconteceu das duas até às seis da manhã”, lembra Sandra.

Depois de toda a violência explícita e simbólica no ato de desmobilização dos acampamentos, seus integrantes eram postos em ônibus e despachados aleatoriamente pelo estado, “pessoas que eram do norte do Paraná foram postas em ônibus indo para sul, separaram todas as pessoas aleatoriamente, separaram mulheres de homens”, me conta a pedagoga. “As pessoas choravam, as crianças choravam, a polícia saiu escoltando os ônibus, com as sirenes ligadas, como se fôssemos bandidos, sempre nos ameaçando. Éramos muito jovens, tínhamos por volta de 13 e 14 anos. Estávamos em um grupo de nove e nos trouxeram até a rodoviária da Lapa. Nos fizeram sair do ônibus com as mãos na cabeça, logo nos deitaram no chão mais uma vez e finalmente nos encaminharam para o assentamento. Foi uma ação muito dura”, conta Sandra.O MST, como mais um movimento popular brasileiro que questiona o status quo, choca-se com o habitus repressivo do Brasil como há de se esperar. Desde sua criação até o final dos anos 90, a violência repressiva faz inúmeras vítimas dentro da organização e tenta sistematicamente desmobilizar as iniciativas campesinas. Mesmo havendo precedente jurídico e o reconhecimento da legitimidade reivindicatória das ocupações de terras devolutas, a tradição se faz sufocante aos anseios populares, em especial no que diz respeito à narrativa pública sobre os reivindicantes. Não é estranho ouvir até hoje todo o preconceito destinado aos trabalhadores sem-terra por parte da população em geral. O saldo final, como nos dita a história, seria de mais um movimento popular sufocado e deslegitimado pelos interesses privados do latifúndio que coopta um estado corrupto.

Porém, apesar de tudo isso, a reprimenda violenta não foi capaz de exterminar o movimento. Algo diferente aconteceu pela primeira vez e o resto desta história, eu conto na próxima coluna.

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