A fome no Brasil é um projeto

Em duas semanas podemos tomar o primeiro passo em outra direção. Dia 30 há de marcar uma nova era de independência

Desde 1981 é comemorado no dia 16 de dezembro, o Dia Mundial da Alimentação. Ao redor do globo, 150 países têm a data como um marco importante de conscientização da opinião pública sobre questões relativas à nutrição e à alimentação. Este ano, com o sugestivo lema de Leave NO ONE behind (“Não deixe ninguém pra trás” – em tradução livre), a Organização para Comida e Agricultura das Nações Unidas faz um clamor por um mundo sustentável onde todos, em todo lugar, tenham acesso a quantidade suficiente de comida nutritiva. O próprio lema deixa claro que, apesar do progresso geral que se tenha feito, muitas pessoas não são capazes de se beneficiar do desenvolvimento humano, inovação e crescimento econômico mundial. Infelizmente, nos últimos anos, o nosso país voltou a ser um desses clássicos e tristes casos.

Alarmantes 70% foi o acréscimo de pessoas em situação de insegurança alimentar grave desde 2020. Apenas quatro em cada dez famílias brasileiras têm acesso pleno à alimentação e mais de 33 milhões passam fome, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. A pesquisa foi administrada pela Rede Pessan e seus pesquisadores em alimentação. Nunca, desde 2003 e 2004, quando foi criada a escala de insegurança alimentar, os números foram tão ruins. Os últimos anos foram especialmente bem sucedidos em deixar brasileiros para trás, com as barrigas vazias.

Porém, há quem diga que a fome no Brasil não é excepcional e sim parte de sua gênese como colônia de exploração, sendo, na verdade, um projeto. “A afirmação de que, no Brasil, a fome é um projeto pode ser retroativamente pensada desde o processo de colonização do território. Isso porque, como defendem várias pessoas autoras nas ciências sociais, o modo colonial de predação de terra e vidas humanas (e não humanas) inaugura uma práxis de dominação e exploração que, de modo sintetizado, extrai riquezas naturais (do ouro à comida) em prol de alimentar o apetite das metrópoles coloniais, basta lembrarmos da divisão territorial do sistema de capitanias hereditárias e dos ciclos agrícolas que sucederam da dominação europeia”, me explica Naomi Meyer, Cozinheira pelo Senac-PR e mestra em Antropologia pela UFPR.

Naomi, que também escreve o Blog Fome de Entender, entende este projeto tácito como algo que transcende os anos sem prejuízo ao seu cerne, “séculos passaram e o mundo mudou radicalmente mas esta práxis apenas se transformou, afinal, seguimos violentando as pessoas nativas e o território, mantendo-os subnutridos para alimentar um sistema global cujo apetite só cresce. Exemplo nítido são os recordes de exportação das safras agrícolas que crescem na mesma dimensão do número de pessoas brasileiras em situação de fome: teoricamente podemos entender este projeto contínuo a partir de autores como Fernando Coronil, que teoriza sobre o lugar subalternizado de “exportadores de natureza” que países do sul global têm. Já é nosso velho conhecido o entendimento de que, por tudo isso, a fome não é produto da escassez de alimentos (como o foi em períodos anteriores, quando a fome era fruto direto de grandes secas, guerras ou situações similares) mas, sim, deste projeto político tão enraizado no país, como defendia há quase 100 anos Josué de Castro, geógrafo expoente do pensamento social sobre a fome no Brasil”, disserta a antropóloga.

É necessário pensar a fome no Brasil não como caso fortuito e contingente: a fome no Brasil é o custo necessário à alimentação do sistema exploratório vigente. A população, seja a vilipendiada originária, a negra oriunda da diáspora, ou a que aqui se formou mediante as intercorrências entre europeus e as duas últimas, serviu sempre e unicamente, como o braço necessário para o êxito do projeto dominante de poucos sobre muitos. Portanto, o plano agrícola do Brasil jamais foi contestado e segue, assim como aquele esquadrinhado pelos portugueses, produzindo fome à medida que progride. Assumindo este prisma, fica fácil observar a necessidade de um esforço contínuo da mídia e lobbies de interesse que nos façam entender o “agro”, como necessário, motivo de orgulho e até “força motriz” do país, apesar de tais afirmações não serem verdadeiras. Nunca foi sobre alimentação, mas sim, dominação de corpos, mentes e lucros de poucos.

“Na mesma medida que podemos afirmar que a fome é um projeto político, temos que seu combate também deve advir de um projeto político”, adverte a antropóloga. “Se a fome começa na má divisão do território, seu combate deveria ter início em uma reforma agrária e agroalimentar que tivesse como prioridade a produção de alimentos e não de commodities para a exportação, na mesma medida em que deveria ser ancorada em políticas públicas de saneamento básico e acesso à água potável, de distribuição de renda, acesso à moradia, educação e empregos dignos. Infelizmente a história recente do Brasil nos mostra que os interesses daqueles que têm dominado o cenário político se afastam dessa perspectiva de construção de soberania agroalimentar e dignidade às pessoas brasileiras, se a diminuição da fome nos primeiros anos da década de 2000 advieram de múltiplas políticas públicas, o retorno aos sinistros números de insegurança alimentar igualmente advêm do desmonte destes projetos nos últimos 5 ou 6 anos”, conclui Naomi.

Portanto, hoje, domingo, Dia Mundial da Alimentação é a ocasião perfeita para se refletir sobre a propaganda e os rumos tomados pelos mandatários brasileiros e suas “elites” nos últimos anos. Em contraste com a maior diminuição de desigualdade da história do país, estão as políticas que aprofundaram a miséria, que os números não deixam mentir, executadas pelo governo nos últimos anos. Em vista disso, é nosso dever cívico, moral e necessário , escrutinar o projeto a que estamos submetidos nos últimos 500 anos e que a administração atual só fez reforçar e ratificar.

Em duas semanas podemos tomar o primeiro passo em outra direção. O dia 30 há de marcar uma nova era de independência.

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