Entre sambas, bossas e jazz

No que se refere à relação entre bossa nova, o samba e o jazz, mais que supor a influência ou determinação de uma forma sobre outra, há que se considerar a circularidade de referências e informações entre estes padrões composicionais que, por sua vez, implicaram em dinâmicas de produção, mas também de circulação de bens culturais nas décadas de 1950 e 1960

Depois, ao poucos, o nosso samba
Sem sentido se aprimorou.

Cartola.

E o samba meio morto,
Ficou meio torto à
Influência do jazz.

Carlos Lyra.

Isso é bossa-nova, isso é muito natural

Tom Jobim e Newton Mendonça.

Há quem sambe diferente
Em outras terras, outra gente.

Assis Valente.

Tão mais difícil que abordar o jazz em sua generalidade talvez seja escrever sobre as particularidades intrínsecas à bossa nova ou considerar a diversidade do vasto repertório do samba. Relacionar estas três expressões musicais, então, torna a análise ainda mais árdua porque cada uma delas se realiza numa esfera específica da produção artística e com dinâmicas próprias. Então, por que relacioná-las se por princípio este seria um trabalho para Sísifo?

João Gilberto (violão), Stan Getz (sax tenor) e Tom Jobim em ensaio para o álbum Getz/Gilberto, em 1963. Foto: reprodução.

João Gilberto (1931-2019), um dos artistas fundamentais na consagração da bossa nova, nas inúmeras vezes em que foi instigado a falar sobre o movimento que havia revolucionado os parâmetros da composição e da interpretação da canção no Brasil, relutava ao dizer que ele próprio não fazia bossa nova, mas samba. Isto é, o “pai da bossa nova” se colocava na condição de sambista, apesar de muito discretamente sugerir certa contraposição entre as formas “samba” e “bossa”. Hierarquização que embora sugerisse os ouvintes a tomarem posição entre uma coisa ou outra, parecia (e ainda parece) suscitar um outro fator importante nessa consideração dos valores sonoros: o da circulação das ideias no compartilhamento de referências estéticas. Porque no que concerne à relação entre bossa nova e o samba, considerados os elementos conjunturais da cena musical brasileira no decorrer do século XX, constataremos “influências” em reciprocidade, entre um padrão de composição e outro. Correspondência entre fatores distintos que, por sua vez, envolviam dinâmicas de produção, mas também de circulação de bens culturais, comuns num momento de incipiência de um mercado de bens culturais no Brasil. E pode-se argumentar que o mesmo entendimento cabe aqui na consideração do jazz, bem como sobre o debate que há muito tenta negar ou confirmar sua alegada ascendência sobre a bossa nova.

Desde os primeiros momentos em que os acordes de Johnny Alf (1929-2010) ou Dick Farney (1921-1987) fizeram-se ouvir pelos bares da zona sul do Rio de Janeiro, no final da década de 1950, o ímpeto por “catalogar” suas respectivas obras como estampa do chamado brazilian jazz foi imediato. Classificações que, em geral, correspondiam à demanda do próprio mercado musical que naquele momento se estruturava e se modernizava em compasso com desenvolvimentismo dos tempos de Juscelino Kubitscheck, e aqui concordamos com André Egg e Murilo Cleto, em artigo recentemente publicado no O Estado de S.Paulo: “apesar de frequentemente comum, é um erro tratar a bossa nova – e especialmente a música de João Gilberto – como um tipo de jazz”.

Johnny Alf (piano), um dos primeiros instrumentistas brasileiros a se consagrar com a bossa nova, mas por muito tempo secundarizado na história do próprio movimento do qual fez parte. Foto: reprodução.

Há outras correspondências que necessitam ser elencadas para que consigamos compreender o processo criativo desses compositores e intérpretes que se empenharam na reformulação das bases da musicalidade brasileira, recorrendo aos materiais ensejados pela cultura popular. Mas é de vital importância também levar em consideração as diferentes técnicas de composição, arranjo e interpretação que foram absorvidas a partir de um processo de circulação de ideias num plano internacionalizado. Isso se aplica à bossa nova, bem como às referências assimiladas a partir das dinâmicas de circulação das mercadorias culturais no Brasil, de meados de 1950 em diante. Mas também se aplica ao jazz produzido nos Estados Unidos, especialmente quando incorporou algumas das experiências sonoras realizadas fora do território norte-americano e que serviu, em certa medida, à expansão do horizontes formais do jazz, mas também à ampliação de seu público e do seu mercado fonográfico.

São essas incorporações que merecem destaque quando se discute bossa nova, jazz e as “influências” que circulam entre ambos. Porque simplesmente ao repor o argumento de que bossa nova é um subproduto do jazz, eliminamos do nosso horizonte os elementos que se entrecruzaram tanto na formação da bossa nova como expressão musical da modernização na segunda metade do século XX, como desconsideramos a incorporação de materiais latino-americanos na elaboração de repertórios musicais nos EUA. Absorções que, inclusive, antecederam a onda cool e existencialista do banquinho e do violão ou do amor e da canção, e tornaram o cancioneiro brasileiro um produto visível no radar da indústria fonográfica norte-americana, sobretudo associada à imagem do país tropical e bonito por natureza. Exemplo dessa empreitada pode ser constatada na presença de fenômeno comercial que foi Carmen Miranda (1909-1955) nos Estados Unidos. Notoriedade e popularidade que contribuíram com uma ideia de brasilidade e de ideal societário, que se fez sentir mesmo no repertório de músicos como Charlie Parker. Bird, que sob impacto de uma das canções mais populares na voz de Carmen, produziu um registro sui generis a partir da composição de Zequinha de Abreu e Aloysio de Oliveira, no início da década de 1950:

Charlie Parker interpreta “Tico-Tico”, composição de Zequinha de Abreu.

Presença musical e circularidade de ideias que atravessavam repertórios das mais variadas origens culturais que, como se pode verificar, antecederam o fenômeno comercial da bossa nova, a partir de 1960. Se a consagração da música brasileira em terras estrangeiras se deu, sobretudo, com a bossa nova – sua forma estética e comercial melhor elaborada – houve, antes disso, um processo gradativo de maturação, inserção de músicos brasileiros na cena musical estrangeira, bem como construção de seu repertório. Ora, para que uma noite de gala da bossa nova do Carnegie Hall, em Nova York, fosse realizada por músicos, compositores e intérpretes brasileiros, houve um trabalho de construção de rede de artistas nos circuitos musicais, mas também empenhos empresariais e governamentais consolidados na política de relações internacionais entre os países envolvidos. Assim, a celebração da bossa nova no Carnegie Hall, em 1962, não marca o início da circulação das ideias e dos materiais musicais entre Brasil e EUA, mas um ponto intermediário num processo mais amplo e abrangente.

Capa do álbum Bossa Nova at the Carnegie Hall, evento realizado no Estados Unidos, em 1962.

Outro exemplo que demonstra esse constructo desenhado na década anterior e que propiciou aproximações entre a cultura musical norte-americana e demais expressões sonoras do continente, foi uma série de registros fonográficos nos EUA sob e estilo denominado latin jazz. No início dos anos 1950, nos EUA, músicos como Mario Bauza, Dizzy Gillespie, Chano Pozo e Machito já haviam realizado algumas experiências com aquilo que ficou conhecido como música afro-cubana, em sessões registradas pelo selo de Norman Granz. Dizzy, na ocasião, chegou a cunhar a expressão “Cubop” e se referia a esse hibridismo entre as experimentações harmônicas do bebop com as estruturas melódicas da música cubana. No que concerne à música brasileira, especificamente, houve também algumas iniciativas do músicos de jazz, sobretudo um quarteto que se consagrou nos EUA interpretando diferentes temas do cancioneiro brasileiro, e não apenas bossa nova. O Modern Jazz Quartet era um grupo de jazz de câmara com um típico repertório mainstream e produziu uma série de registros peculiares na década de 1950, incorporando composições brasileiras. O grupo integrado por John Lewis (piano), Milt Jackson (vibrafone), Pearcy Heath (baixo) e Connie Kay (bateria) gravou, entre outros temas, uma versão de “Bachianas brasileiras nº 5”, de Heitor Villa-Lobos:

Modern Jazz Quartet interpreta “Bachianas Brasileiras nº 05”, de Heitor Villa-Lobos.

Apesar de um tanto heterodoxo, o arranjo do Modern Jazz Quartet para uma composição de Villa-Lobos aqui traduzida para um forma jazzística demonstrava o interesse dos músicos norte-americanos na década de 1950 por novas experimentações e hibridações no campo da música. Esse tipo de interesse pela cultura musical brasileira manteve-se pelos ano seguintes e foi ainda mais revigorado quando a bossa nova adentrou o mercado fonográfico norte-americano, conquistando espaço ainda maior no repertório de instrumentistas do jazz. Outro exemplo dessa circularidade foi a produção do álbum com sugestivo título de “Colaboração”.  “Collaboration: The Modern Jazz Quartet With Larindo de Almeida”, gravado em 1964, agora no auge da bossa nova, trazia três composições de John Lewis, mas também “Fuga em A Menor” (J.S. Bach), “Concerto de Aranjuez (Joaquim Rodrigo) e outros dois temas brasileiros: “Samba de uma Nota Só” (Tom Jobim e Newton Mendonça) e “Foi a Saudade” (Djalma Ferreira). Colaboração que se materializava não apenas na construção do repertório eclético proposto pelo álbum, mas pela participação do violonista brasileiro Laurindo de Almeida, que anos antes havia feito parte da orquestra de Carmen Miranda nos EUA.

Laurindo de Almeida e o Modern Jazz Quartet interpretam “Samba de uma Nota Só”, composição de Tom Jobim e Newton Mendonça. A sessão registrada pela Atlantic em 21/07/1964.

De todo modo, o que se observa no jazz produzido nos EUA nesse momento é uma mudança que reconfigurou não apenas o mercado, o público consumidor do jazz mainstream, mas também o modo como se deu a incorporação do novo repertório por músicos que até então não tinham dado relevância às sonoridades oriundas do restante do continente. Uma das mudanças mais perceptíveis na estruturação dos arranjos e na construção de uma “nova” sonoridade resultou, por exemplo, na diversificação da sessão rítmica com inclusão de instrumentos percussivos (atabaques, congas, bongôs etc). Uma outra mudança que pode ser observada foi a centralidade que certos instrumentos passaram a ter nos registros fonográficos, em que a guitarra ou mesmo o violão passaram a ter um papel de destaque nos novos arranjos – em detrimento do piano ou mesmo do trompete ou saxofone. Com raríssimas exceções, com a de Charlie Christian (1916-1942), que havia tocado guitarra acompanhando o grupo de Benny Goodman no início dos anos 1940 e de Django Reinhardt (1910-1953) que era belga e tinha uma relação muito particular com jazz manouche, os guitarristas ou violinistas mais conhecidos do jazz consagraram-se a partir desse momento. Assim, Wes Montgomery (1923-1968), Joe Pass (1929-1994), Jim Hall (1930-2013), Kenny Burrell (1931), George Benson (1943), Grant Green (1935-1979), Tal Farlow (1921-1998), Herb Ellis (1921-2010), Barney Kessell (1923-2004), entre outros, emergiram na cena jazzística no final dos anos 1950 e consagraram-se na década seguinte.

Como afirmado anteriormente, essa visibilidade do violão ou da guitarra no jazz, a partir do final da década de 1950, se tornou um fator importante, não apenas para aproximar o jazz das expressões musicais latinas (ou mesmo da bossa nova), mas também serviu como novo fator na reconfiguração do jazz a partir do final daquela década em diante. Pois, se ao mesmo tempo buscou-se uma forma de incorporar os valores de uma suposta latinidade, com o uso de violões, guitarras, atabaques, congas e bongôs, houve por outro lado, aquelas experimentações mais vanguardistas do free, do cool e de outras formas mais heterodoxas que pulverizaram o campo do jazz em diferentes estilos e tendências. E por fim, um outro fator importante: a emergência do rock naqueles anos também impactou diretamente o mercado fonográfico, que voltou sua atenção para o público jovem, o principal consumidor de LPs num mercado que cada vez mais se estratificava.

Então, a reorganização do repertório a partir da seleção dos instrumentos a serem executados numa sessão foi de importância fundamental, porque constituía uma referenciação a uma unidade e identidade sonoras, em função das referências estéticas, da mesma forma que se reportava a um novo modo de produção e de consumo do próprio jazz. No caso da relação com a bossa nova, essa organização apostou numa forma que recuperava uma sonoridade menos harmônica e mais melódica, atribuindo ao instrumento de seis cordas e seu papel central e organizador da canção. Isso pode ser constatado tanto na incorporação de composições brasileiras, como na elaboração de arranjos de standards do jazz norte-americano. Como se constata na interpretação de Charlie Byrd (1925-1999) faz de “Django”, composição de John Lewis (líder do Modern Jazz Quartet) fez em homenagem a Django Reinhardt:

Charlie Byrd interpreta “Django”, faixa registrada no álbum The Guitar Artistry of Charlie Byrd, em 1960.

Mas é evidente que essa relação não se organizou única e exclusivamente com a presença do violão/guitarra na busca por centralidade nos arranjos jazzísticos. Até porque com a advento comercial da bossa nova no EUA, muitos instrumentistas do jazz passaram a emular os rítmicos binários do samba sem abandonar o compasso quaternário do jazz. Então, não apenas o violão, mas o modo de incorporar a seção rítmica da bossa foi outro elemento definidor no processo de circulação dessas novas ideias musicais.  O álbum que talvez tenha consagrado de forma mais refinada essa relação, esse relacionamento cultural híbrido, foi Getz/Gilberto, gravado em 1963 e lançado em 1964. Este disco por si só carrega consigo um conjunto de significações e simbologias tanto no campo do jazz como da bossa nova. É, inclusive, considerado a obra que popularizou a bossa nova em todo mundo e não apenas nos EUA. Álbum que consagrou mundialmente os nomes de Tom Jobim, João Gilberto e Astrud Gilberto e reposicionaram Stan Getz no cena jazzística Obra que resultou, segundo consta, de uma relação de trabalho tumultuada, em que Tom Jobim (o único bilíngue entre os músicos da sessão) teve de apaziguar os ânimos entre João Gilberto e Stan Getz, posto que o primeiro seguidamente reclamava dos longos solos do sax tenor sobre a melodia executada ao violão. Abaixo, uma das faixas desse disco que se tornou um clássico entre bossa novistas e jazzistas:

João Gilberto (violão), Tom Jobim (piano), Stan Getz (sax tenor), Sebastião Neto (baixo) e Milton Banana (bateria) interpretam “Pra machucar meu coração” (Ary Barroso). Sessão realizada em 19/03/1963 pela Verve Records.

Se havia até então um esforço por relacionar a bossa nova ao jazz, este álbum, de certa forma, materializou essa relação e fez a indústria da música (dentro e fora dos EUA) voltar as atenções para a música brasileira. Num momento em que o país também passava por um momento importante de mudanças estruturais, depois ofuscadas pelo golpe militar em abril de 1964, a Música Popular Brasileira (MPB) ainda assim vicejou em diferentes festivais e demais produções culturais ao redor do mundo. Da mesma forma, num movimento contrário, a presença do jazz no Brasil, tematizada tanto criticamente nos versos de Carlos Lyra sobre a “influência do jazz”, como pela proliferação de grupos instrumentais que acompanharam – por exemplo, Edu Lobo (o Tamba Trio) ou Elis Regina e Jair no programa “O fino da bossa” (o Bossa Jazz Trio) – reforçaram a importância da circulação das referências e dos repertórios entre músicos brasileiros e norte-americanos, especialmente.

De lá pra cá essas relações não cessaram de acontecer e das mais variadas formas possíveis. Ainda na década de 1960, o saxofonista tenor Sonny Rollins incursionou pelo repertório brasileiro. Outro saxofonista tenor, Ike Quebec, gravou o álbum Soul Samba (1962) e continha uma seleção bastante diversificada que ia de Dvorak, Liszt a Carlos Monteiro de Souza e Joraci Camargo. Outro exemplo foi guitarrista Joe Pass e o trombonista J.J. Johnson que sempre se reportavam a essa relação com a bossa ou com o samba. Até mesmo John Coltrane (sax tenor) chegou a registrar uma sessão de improviso coletivo com seu grupo em 1965, com McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (baixo) e Elvin Jones (bateria). Embora registrado em 1965, a gravação foi postumamente publicada em disco intitulado Brazilia e que, mais uma vez, demonstrava essa circularidade das ideias e as referências harmônicas e melódicas que serviram de base ao instrumentista norte-americano, mesmo entre os músicos do free-jazz.

Capa do álbum Brazilia, de John Coltrane. Gravado em 1965, mas lançado em 1978.

Numa das epígrafes-diálogo que abre essa coluna, Assis Valente enuncia que “há quem sambe diferente, noutras terras, outra gente, um batuque de matar”. Indica-nos como pode ser redutora a noção de “influência” ou de “determinação” e que o samba, ainda possa ser um produto genuinamente nacional, pode ser executado de forma diferente noutras terras. Mas isso só pode ser possível se consideramos a noção de influência ou determinação noutros termos. Afinal, quando considerarmos uma obra musical ou qualquer outra obra artística, referimo-nos à de criação do artista, mas também às referências com as quais o artista dialoga e organiza o conhecimento que possui sobre seu próprio ofício. Se entendemos que uma obra é mero produto da influência de uma estrutura sobre o sujeito que cria, rejeitamos toda e qualquer possibilidade de autonomia do artista e condenamos seu processo criativo à mera mimese da realidade. Quando subentendemos o que aqui chamamos de uma circulação das ideias e dos signos culturais, pressupomos que há um processo rico e complexo de apropriação das normas de criação, mas também a reconfiguração dessas normas com base no ato criativo do artista e sua necessidade em formular respostas a partir da obra. Mais que determinado por uma influência, o artista – nosso caso aqui, o músico – elabora a forma e o conteúdo da obra considerando as diretrizes de seu contexto, mas com a intenção de superá-lo e dar sentido à experiência estética, ainda que seja na batucada.

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