Por um 2022 sem a discussão ilusória do “nazismo de esquerda”

Que o ano novo nos traga reflexões e debates relevantes para a memória do Holocausto – e que a infeliz e distorcida pseudodiscussão sobre o “nazismo de esquerda” seja finalmente superada

A construção da memória é um processo contínuo que envolve também a desconstrução de mitos. Nenhum evento histórico, por mais traumático, nos entrega de bandeja uma memória pronta para ser reverenciada, protegida e transmitida para as próximas gerações. É uma batalha constante, que determina a hegemonia de narrativas que nos orientam como e por que lembrar. Porém, algumas delas são improdutivas, dificultam o processo e, às vezes, se baseiam até em argumentos negacionistas. Caso da famigerada pseudodiscussão sobre o “nazismo de esquerda”.

Há pelo menos quatro anos, há uma tentativa (bem-sucedida) de implantar no debate público uma discussão ilusória sobre a natureza político-ideológica do nazismo. E para que a construção da memória possa avançar e evoluir, principalmente junto a nação brasileira, é necessário urgentemente retirar esse devaneio da pauta. Que 2022 nos traga reflexões e debates relevantes para a memória do Holocausto – e que a infeliz e distorcida pseudodiscussão sobre o “nazismo de esquerda” seja finalmente superada.

Pseudodiscussão

A historiografia séria e comprometida com a metodologia e os processos científicos, que envolvem os caminhos e os instrumentos usados para se fazer ciência, já demonstrou que essa é uma pseudodiscussão. Existe um consenso baseado em rotinas metodológicas e em padrões e fontes históricas validadas cientificamente que asseguram o campo da extrema-direita como orientação ideológica definitiva por parte do nazismo. Apesar da busca por gerar hesitações na população menos instruída e mais suscetível à manipulação, este é um caráter imutável.

Assim, por exemplo, se apresentam os estudos de historiadores israelenses como Yehuda Bauer, David Bankier, Israel Gutman, Dan Michman, Avraham Margaliot, Yitzhak Arad, Otto Dov Kulka, Chaim Schatzker e Uriel Tal, dentre tantas outras referências. Suas profundas análises historiográficas formam a base conceitual da museografia de uma das instituições de memória e pesquisa mais respeitadas do mundo sobre a Shoá: o Yad Vashem, localizado em Jerusalém, Israel. Sua expografia apresenta, por meio de uma narrativa precisa e pedagogicamente construída, o nazismo como um movimento sociopolítico de extrema-direita, anticomunista, totalitário, racista e antissemita – mesmo que as experiências do socialismo real tenham sido tão antidemocráticas quanto a ditadura nazista. Regimes totalitários podem estar de qualquer lado do espectro político.

Que sejamos explícitos: a disputa entre narrativas acerca da natureza política do nazismo não dialoga com a metodologia histórica e sequer existiu dentro do círculo acadêmico convencional – mesmo por aqueles que assumiram que o estudo do nazismo subvertera o significado tradicional da direita, casos de Norbet Elias e de Hannah Arendt.

O caráter analítico e didático do pensamento do filósofo Norberto Bobbio demonstra tanto o antagonismo quanto a condição excludente entre a direita e a esquerda. Assim, são expressivos seus estudos que inserem o fascismo e o nazismo nos eixos conjuntos de desigualdade e de autoridade – e, consequentemente, no espectro ideológico da direita radical. Para esta reflexão, são importantes as ponderações de que é equivocada a noção de que tanto autores quanto ideologias possam ser reinterpretados de maneira oposta a seus pensamentos. Tais esforços de redefinição conceitual são, de acordo com o historiador Richard Overy, um “exercício fútil”.

Por que o nazismo se localiza no espectro da extrema-direita?

Ainda que possua o nome nacional-socialista ou que faça referência aos “trabalhadores alemães”, caracterizar o nazismo como movimento de esquerda não encontra corroboração na vasta historiografia sobre o tema. Os nazistas não se afirmavam de direita ou de esquerda, pois desprezavam a política como o debate entre diferenças. Mas essa autorrepresentação não significa que estivessem à parte da política – Hitler inclusive zombava de quem dizia ser o nazismo parte da esquerda. É um delírio a ideia do nazismo como “terceira via”.

O nazismo pode ser caracterizado como de extrema-direita pois, enquanto as esquerdas enxergam desigualdades como problema causado pela sociedade e que deveria ser minimizado ou anulado, o nazismo não apenas desconsidera as desigualdades como um problema, como as naturaliza em termos raciais e nacionais. Enquanto a esquerda enfatizava os interesses de classe, os nazistas buscavam apaziguar conflitos de classe por meio de uma união nacional-racial.

Quando surgiu, havia setores do partido que defendiam, além do anticomunismo, um anticapitalismo. Essa vertente foi praticamente eliminada na Noite das Facas Longas, em 1934. O anticapitalismo nazista se voltava contra o estilo de vida burguês, considerado acomodado, antipatriótico e judaico; e menos contra a função socioeconômica da burguesia. Esse anticapitalismo nazista não visava a superação do capitalismo, mas sua reversão. Admitia-se o uso de recursos modernos, como a indústria ou a política de massas, mas com o objetivo de retornar a um passado idealizado, com uma sociedade radicalmente ordenada e hierarquizada, em uma espécie de utopia reacionária.

O uso de retórica e símbolos de esquerda pelos nazistas visava um apelo popular que afastasse os trabalhadores dos partidos de esquerda, sobretudo o comunista, visto como seu grande inimigo político. O Estado corporativo dos fascismos – que não é um Estado Mínimo, denotando seu antiliberalismo – também está distante da esquerda, já que sua função não era reduzir as desigualdades e aumentar o poder da classe trabalhadora, muito menos atacar a propriedade privada dos meios de produção. Pelo contrário, era controlar os trabalhadores e acabar com a autonomia do movimento operário. Para chegar e se manter no poder, o partido nazista recebeu apoio – mesmo que desconfortável – das elites econômicas alemãs, que o viam como um meio de esmagar as esquerdas.

Cabe ressaltar que esquerda e direita são termos que só fazem sentido um em relação ao outro. Eles são contextuais e plurais. No entanto, a caracterização do nazismo na extrema-direita do espectro político, como demonstra a historiografia, não associa automaticamente qualquer movimento de direita ao nazismo.

Prejuízos educativos

A natureza ideológica do nazismo é definitiva, bem como a impossibilidade de que ressignificações possam retirá-lo deste espectro. Disso, surgem questionamentos mais profundos. Considerando a ideia espúria de um “nazismo esquerdista”, de que forma a popularização desta discussão ilusória e partidarizada compromete a construção da memória do Holocausto? Quais pressupostos utilizados por esta retórica deturpada prejudicam a educação sobre a Shoá no século XXI? Como este malefício se dá na prática?

É cada vez mais necessário elucidar a discrepância entre este falso debate e o ensino universal do Holocausto. É preciso entender como o pressuposto do argumento do “nazismo de esquerda” está ligado aos negacionismos contemporâneos, com suas graves implicações para a memória e para a educação. A partir disso, é preciso explorar as consequências da visão degenerada de que um dos maiores legados deste genocídio, a internacionalização dos direitos humanos, estariam supostamente ligados à esquerda – e, por esta razão, não poderiam conectar-se aos à Pedagogia do Holocausto, incluindo nesta perspectiva o fenômeno do ataque ao consenso antifascista.

O fato de que uma extrema-direita racista, nacionalista e nostálgica produziu o genocídio não pode ser transfigurado para fins político-partidários, sob risco de prejuízo da memória (e da relativização do genocídio), do alerta contínuo e da herança educativa construída há mais de 70 anos: o “Nunca Mais”. Além do dano imediato em iniciativas pedagógicas (como escolas e museus), podemos ter que lidar com uma mácula que pode custar gerações para que seja sanada. Os negacionismos envolvem falsificações e confusões históricas, mas se alicerçam em atitudes ideologicamente fabricadas que só poderão ser enfrentadas pela educação. Esta é a verdadeira construção da memória.


Para ir além

BAUER, Yehuda. The Holocaust in historical perspective. Seattle, 1976.

BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Unesp, 1995.

KERSHAW, Ian. The nazi dictatorship: problems and perspectives of interpretation. London: Bloomsbury, 2015.

MORAES, Luís Edmundo de Souza. O Negacionismo e as Disputas de Memória: Reflexões sobre intelectuais de extrema-direita e a negação do Holocausto. Anais eletrônicos do XIII Encontro de História Anpuh-Rio, 2008.

PAXTON, Robert O. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

RICHARD, Lionel. A República de Weimar. Companhia das Letras, 1988.

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