Primeiros socorros

Desde que me tornei sobrevivente, me comunico com amigos e familiares de pessoas recém-internadas por causa de um AVC. Me identifico com essa situação não exatamente como AVCista, mas porque, aos dezoito anos, internei meu avô, sobrevivente de um AVC isquêmico

A gente nunca tem um AVC sozinho. Apesar de cada acidente vascular cerebral acontecer em um corpo, na prática, não é bem assim que acontece, já que quem nos ama também sofre. Talvez a pessoa não saiba, mas indiretamente também sofreu um AVC. Sua vida nunca mais será a mesma.

Afirmar que quem nos ama também sofre o nosso AVC não significa diminuir o impacto sofrido pela vítima. Sem dúvida ela é a principal atingida. Porém, a dor e as consequências de uma lesão cerebral são tão profundas, que reverberam por todos os lados, em todas as pessoas que a apreciam. É tão devastador quanto a explosão de uma bomba. As pessoas mais próximas também são atingidas, todavia, no primeiro momento elas ainda não sabem, nem têm ideia do que está por vir, e precisarão de muito apoio, de primeiros socorros.

Desde que me tornei sobrevivente, me comunico com amigos e familiares de pessoas recém-internadas por causa de um AVC. Me identifico com essa situação não exatamente como AVCista, mas porque, aos dezoito anos, internei meu avô, sobrevivente de um AVC isquêmico. Conheço bem aquela sensação de desespero misturada com impotência, enquanto a gente só espera o retorno de alguém da equipe médica para nos dizer o que aconteceu. Não é fácil e a gente se ilude muito. A gente até pensa e age como se fosse uma simples indisposição, mas sabe que não é. No fundo, sabemos que os sintomas que nos levaram até lá eram bem graves e sente muito medo por isso. É como se soubéssemos que o buraco é mais embaixo.

Caso você esteja passando por este momento ou cuida de alguém muito amado que teve AVC, estou escrevendo este texto para você. Olha, vou procurar não romantizar a situação, porque acredito que isso só piora, tá? Além disso, como toda pessoa com lesão cerebral, tenho as emoções à flor da pele (tanto para o bem como para o mal), o que faz com que minhas palavras sejam mais diretas. Então, precisamos combinar que esta leitura poderá ser tão ardida como uma dose daquele merthiolate antigo, mas que infelizmente é necessária.

Primeiramente, é importante que você saiba que a partir de agora será um dia de cada vez, e que cada um deles será muito importante. O cérebro demora anos para se recuperar. Por mais que o sobrevivente aparentemente esteja bem, ainda há muito a se descobrir sobre a lesão adquirida e isso não será da noite para o dia. Machucar o cérebro não é como machucar o pé. É muito mais complexo. Acredito que por mais capacitado que o neurologista seja, nem ele sabe precisamente o que aconteceu e o que ocorrerá daqui por diante. Tudo vai depender de como o cérebro vai reagir. E para que o médico tenha uma ideia disso serão necessários muitos exames, como: tomografias, angiografias e eletrocefalogramas. O cérebro é uma caixinha de surpresas até para o próprio especialista. Por meio dessa bateria de exames e de testes com o paciente é que ele terá uma ideia do diagnóstico: e essa tão esperada conversa provavelmente será muito perturbadora.

Ao meu ver, não existe um diagnóstico de lesão cerebral leve. Afinal, é um dos principais órgãos do corpo humano; nada que muda lá tem poucas consequências. Prepare-se para ouvir expressões como “lesão permanente”, “incapacidade” e “nunca mais…” e tente respirar. Apesar de não ser médica, tenho experiência em AVC (como sobrevivente de dois e como acompanhante do sofrido pelo meu avô) e tenho a impressão de que o olhar do médico está direcionado para o tratamento da lesão, e não para a recuperação das limitações do paciente. Ou seja, por melhores intenções e empatia que ele tenha, o foco dele está no tratamento do órgão, e não na recuperação mental, emocional e física do seu pai, da sua esposa ou do seu filho sobrevivente. Quem cuidará dessa segunda parte são outros especialistas (fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, neuropsicólogos etc.), que você terá contato depois que o seu amado(a) tiver alta hospitalar. Sendo assim, não se desespere ao ouvir o diagnóstico, ele não é uma sentença. 

Quando o sobrevivente retorna ao lar, começa a segunda fase da luta pós-AVC, já que a primeira é sobreviver a ele. A sua casa vai encher de gente, cheia de carinho, com as melhores intenções e cheios de promessas de ajuda. Noventa por cento dessas pessoas não responderão às suas mensagens no próximo mês porque a vida está corrida, porque surgiram outras prioridades ou porque você se tornou uma pessoa chata que só fala do AVC que te engoliu. Hoje entendo que a vida continua para todos e que alguns acabam sendo esquecidos no caminho, mas quando é a gente que passa pelo perrengue, a sensação que dá é de abandono mesmo. Mas você não estará sozinho, encontrará amizade e apoio de pessoas que ainda não conhece (uma terapeuta ocupacional que se identificou, uma nova amiga de um grupo de apoio ou que está numa outra situação semelhante). Essas pessoas vão segurar a sua barra de tal forma que você irá se surpreender e compreender o valor da palavra “humanidade”.

O retorno para casa é o pior momento para a maioria dos sobreviventes de AVC, porque é quando as sequelas aparecem para a gente e nos damos conta que nossas ações ficam limitadas. Um grande “não” envolve nossas cabeças: não conseguimos nos vestir, tomar banho sozinhos, nos alimentar, nem mesmo usar o assento sanitário sem ajuda. Geralmente é o momento em que as nossas sequelas psíquicas (como a depressão e a ansiedade) vêm à tona. Para você também será desesperador. Talvez se pergunte: será que preciso contratar uma enfermeira ou é melhor eu retornar à terapia? A minha resposta seria: os dois! Já que a situação é realmente complicada para todos os realmente envolvidos.

A conta também não caberá no bolso. Os remédios são caros, o preço dos equipamentos começará a pesar e, de repente, você descobrirá que o plano de saúde não libera facilmente os tratamentos especializados, mesmo quando são conveniados. Isso é claro, se você não depender exclusivamente do SUS (que apesar de ser bom, está longe de dar conta da alta demanda). Começa-se uma guerra, e você vai descobrir que depois de um AVC, além de lutar pelo melhor médico, você também vai precisar lutar pelo melhor advogado. Realmente é uma bola de neve, e você suspira ao lembrar de quando pensou que tudo estaria resolvido após a alta hospitalar. Quanta inocência!

Porém, apesar de difícil (acredito que o primeiro ano seja o mais desafiador), há muitos aprendizados. Depois de alguns anos pós-acidente, você se tornará um verdadeiro leão nos assuntos jurídicos e de saúde, sempre descobrindo novidades, e até o seu vocabulário será diferenciado (aposto que “neuroplasticidade” será o seu segundo nome!).

Sobreviver a um AVC, direta ou indiretamente, também significará que nunca mais você pisará em um estado (quiçá país) sem encontrar outro sobrevivente, porque graças à internet, centros de reabilitação e hospitais, você saberá identificar essa pessoa com muita facilidade (além do físico, temos uma conversa bem característica), e assim, o mundo fica menor e um pouco mais amigável.

Amigo(a), eu sinto muito que você tenha sofrido um AVC e que as nossas vidas tenham se cruzado desta maneira. (Com certeza preferiria que tivesse sido na Disney). Mas, quero que saiba que apesar de tudo ter ido pelos ares, a sua vida e a vida de quem você ama não acabaram, elas apenas mudaram. Drasticamente. A sua vida agora é uma outra vida, mas isso não quer dizer que necessariamente ela tenha piorado. Acredite, eu sei bem do que estou falando.

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