Paralelos e dissidências: a educação do Holocausto na América Latina

Em cada país, há uma realidade diferente e maneiras próprias de abordar a Shoá

Entre 24 de abril e 2 de maio, viajei com outros profissionais – do Brasil, Argentina, México e Chile – para conhecer 20 organizações, museus e federações nos Estados Unidos, relacionados ao Holocausto e aos Direitos Humanos. Há sete anos responsável pelo departamento de Comunicação do Museu do Holocausto de Curitiba, fui convidada a integrar uma das edições do International Visitor Leadership Program (IVLP), um intercâmbio do Departamento de Estado dos EUA para líderes emergentes de diferentes áreas e de diversas partes do mundo, organizada pelo Bureau of Education and Cultural Affairs, com nomeação feita pelas Embaixadas dos EUA. Em 2023, o programa teve como tema “Combatendo à negação do Holocausto e o antissemitismo para enfrentar o racismo e o ódio identitário”.

Nestas duas semanas, descobrimos diversas iniciativas voltadas à memória do genocídio nos Estados Unidos, e tivemos a inesquecível chance de conversar com três sobreviventes do Holocausto, ligados à Kol Israel Foundation (Cleveland). Rose e Art Gelbart, assim como Erika Gold, vivem no país e ainda hoje contam as suas histórias às próximas gerações.

No decorrer da viagem, foram três projetos museológicos – Maltz Museum of Jewish Heritage (Cleveland), Holocaust Memorial Resource Center (Orlando) e United States Holocaust Memorial Museum (Washington) – que nos permitiram perceber como a memória da Shoá (Holocausto), no país, está diretamente relacionada ao combate ao ódio – seja ele motivado por qualquer razão.

Na programação, visitamos ainda o Orange County Regional History Center, responsável pela rememoração de crimes como o atentado à boate Pulse e ao massacre de Ocoee, ambos em Orlando. A escolha dos espaços não foi à toa, nos mostra como todos esses casos de violência – racista e LGBTQIA+fóbica – estão diretamente associados, e como o enfrentamento ao problema só ocorre por meio da educação, moldada a partir das lições que aprendemos com o passado.

Mas a experiência nas cidades de Washington, Cleveland e Orlando, enriquecedora para quem pesquisa e trabalha com esses tópicos, foi ainda mais potencializadora pela oportunidade de criar conexões com outros países da América Latina.

Esta possibilidade já havia se concretizada em outra situação, ainda em 2020. A Rede Latino-Americana para o Ensino da Shoá (LAES) nasceu devido ao fechamento temporário de centros culturais, museus e memoriais, resultante da pandemia global da Covid-19. A impossibilidade de continuar com ações presenciais levou à rápida construção de um coletivo de museus e instituições sem fins lucrativos dedicadas ao estudo, ensino e divulgação da Shoá na América Latina. Além do Museu em Curitiba, uniram-se instituições da Argentina, Chile, Costa Rica, Guatemala, México, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai.

Diferentes abordagens

Durante a vivência nos Estados Unidos, tive a chance de acompanhar de perto o trabalho sobre Holocausto realizado por profissionais latino-americanos. Ainda que seus respectivos países contem com uma série de instituições, com diferentes propostas educativas sobre o tema, a percepção de que a Shoá é uma ferramenta educativa extremamente oportuna para discutir preconceito e discriminação é unânime entre eles. É claro, no entanto, que cada um desses países tem um contexto específico e, por isso, talvez, acabem por diversificar a abordagem feita a partir das lições do genocídio.

A Argentina tem a maior população de origem judaica da América Latina. São cerca de 230 mil pessoas, a sexta do mundo fora de Israel. Paralelamente, o país ficou conhecido por ter servido de abrigo a nazistas, como Adolf Eichmann, que, depois de capturado, foi considerado culpado por crimes de guerra em Israel e enforcado. Atualmente, sabe-se que o número de criminosos que escaparam para a Argentina é muito pequeno se comparado a outros países, mas, ainda assim, instituições locais precisam lidar com esse estereótipo criado e alimentado por décadas.

O Museu do Holocausto de Buenos Aires, por exemplo, enfrenta a contradição de forma inteligente, sem fugir do tema, mas focando na história de sobreviventes que chegaram e reconstruíram suas vidas no país. O Brasil, que também recebeu nazistas – como Josef Mengele, Franz Stangl e Gustav Wagner – caminha numa trajetória muito parecida. Aqui, no Museu do Holocausto de Curitiba, são as narrativas de esperança e resiliência das vítimas da Shoá que guiam o visitante pelo circuito expositivo. Não focamos nos perpetradores, mas também não os tratamos como monstros, porque dentro da pedagogia da Shoá, sabemos o quanto é importante humanizar figuras históricas.

Já o Chile lida com outro contexto. A partir do fim do século 19, quando imigrantes árabes começaram a migrar para países da América do Sul, como Brasil, Argentina, Peru e Bolívia, muitos palestinos optaram pelo Chile. Hoje, formam a maior comunidade fora do Oriente Médio – entre 350 mil e 500 mil pessoas (cerca de 3% dos 18 milhões de habitantes). Instituições locais, que tratam de temas ligados ao Holocausto e Direitos Humanos, precisam abordar a questão da imigração palestina e da recepção desse grupo em seu país, assim como as ações de Israel na região.

Essa abordagem, especificamente, dialoga com as tentativas de projetos, aqui no Brasil, de usar as lições do Holocausto para contribuir com discussões atuais, tais como o assassinato da população negra no país e altos casos de LGBTQIA+fobia registrados. A premissa por trás dessas tentativas é a mesma, ainda que os assuntos possam não parecer conversar entre si.

No México, a realidade já é outra. A segunda maior economia da América Latina, uma das 15 maiores do mundo e um grande exportador de petróleo, enfrenta uma gigantesca desigualdade social e níveis endêmicos de violência. A prosperidade de determinadas regiões não chega a todos, e a pobreza é alta em zonas rurais e periferias de zonas urbanas, sem falar no tráfico de drogas que assola o país. A situação, obviamente, não é tão diferente da nossa. No país, a Shoá é essencial para traçar um paralelo sobre os perigos da discriminação e da violência – seja motivada por qualquer razão.

Esses exemplos dizem muito sobre como nossos trabalhos, ainda que aplicados a diferentes cenários, estão interligados. E fato da troca desses percepções ter sido realizada em um país como os Estados Unidos, que por alguns fatores – altos casos de racismo e LGBTQIA+fobia, assim como o genocídio da população indígena – tem conexões tão fortes como Brasil, é ainda mais interessante. Percebe-se que a América, ainda que de longe tão plural e distinta, ainda precisa aprender lições muito parecidas.

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