Nos detritos do silêncio: genocídio também é assunto de mulher

A extensão da participação de mulheres alemãs no sistema nazista, não como vítimas, mas como perpetradoras e cúmplices

O que é ser uma mulher? Quais as palavras e atitudes permitidas ao ser feminino, ao corpo e à língua da mulher? Apesar do abraço dado à normalização da mulher como desobediente, rebelde ou sujeito problemático em um longo período da História da humanidade, a figura feminina é lembrada, por via de regra, de maneira mistificada, permeada de delicadeza, ingenuidade, fragilidade, beleza e amabilidade, bem como propensa a assumir comportamentos de obediência, contenção e castidade.

No entanto, a vivência da mulher pode ter significados obscuros, afinal, a objetificação do feminino culmina em diferentes formas da mulher agir e viver no mundo. Sendo assim, as mulheres podem ser cruéis?

“As mulheres não eram estranhas. Nem eram destruidores ou fomentadores de guerra, eram? As mulheres eram nutridoras e pacificadoras, não eram?” A escritora Alison Owings, autora de “Frauen: German Women Recall the Third Reich” (1993), diz que existe uma suposição de que a maioria das mulheres era simplesmente melhor, ou mais preocupadas moralmente, do que os homens. Assim, de forma geral, as mulheres foram apresentadas como um grupo sem influência da população que, em parte, foram vítimas do regime nazista, sendo incapazes de implementar ou ignorar as crueldades da Shoá.

A historiadora norte-americana Wendy Lower retrata outra face do ser feminino durante a Guerra. Em As mulheres do nazismo (2013) — um relato sobre mulheres alemãs que realizaram ativamente políticas racistas nazistas na Europa e foram perpetradoras do Holocausto —, Lower lista treze nomes no início da obra, escrevendo acima: “Testemunhas, cúmplices, assassinas”. Dessa forma, deixa explícito em sua narrativa que muitas mulheres que viveram nesse período foram espectadoras passivas, colaboradoras e, em alguns casos, até mesmo torturadoras violentas.

As mulheres do nazismo

Com a ascensão de Adolf Hitler, em 30 de janeiro de 1933, na Alemanha o clima era de euforia, após uma era agonizante. Juntamente a um espírito patriota e ambicioso, no pensamento nazista, as mulheres alemãs eram vitais para a política populacional de criar uma comunidade “ariana” ideal, como geradoras da raça, além do ativismo no movimento. O papel da mulher, então, era simples: a maternidade deveria ser glorificada e era esperado que tivessem uma participação ativa em organizações que promoviam os objetivos do regime de pureza racial e conquista imperial. Em contrapartida, elas não deveriam ocupar cargos de responsabilidade pública ou de liderança. Consequentemente, mulheres foram expulsas de posições de poder social e político, e outras, consideradas biologicamente inferiores ou que resistiram às políticas do regime, foram levadas para campos de concentração e, em alguns casos, esterilizadas à força. As que permaneceram no sistema, acabaram servindo como assistentes sociais, secretárias, enfermeiras, auxiliares nas forças armadas e na polícia, e como guardas.

No entanto, há um equívoco ao descrever essas mulheres, pois elas foram discriminadas pelo Terceiro Reich, como um reflexo do sexismo relativo à sociedade na época, mas não se deve usar o termo “vítima” para retratá-las. Do mesmo modo que a atuação das mulheres na história é frequentemente subvalorizada, o comportamento das mulheres nos crimes da Alemanha nazista não foi apropriadamente aprofundado. 13 milhões de mulheres, um terço da população feminina alemã, estava engajado em alguma organização do partido nazista. As mulheres do nazismo acabaram acreditando que a violência era um ato de vingança justificado e de lealdade.

A descrição de um ser humano tão cruel e brutal pode assustar ainda mais quando o perpetrador é uma mulher. De certa forma, espera-se que os homens cometam tais crimes, sejam agressivos e fomentadores da guerra, enquanto as mulheres são vistas como gentis e pacificadoras, mantendo seus valores. Erna Petri, esposa de Horst — um oficial sádico da SS estabelecido na Ucrânia, que sentia prazer na violência —, tirou a vida de seis crianças judias com sua própria arma. Apesar dela ser mãe de dois filhos pequenos, reduziu o valor da vida de suas vítimas a nada, apresentando um profundo antissemitismo nazista. “Como me disseram, eu tinha que destruir os judeus. Foi com essa ideia na cabeça que cheguei a cometer um ato tão brutal”, disse em seu depoimento no pós-guerra.

Na maioria dos outros julgamentos de crimes de guerra nazistas, milhares de mulheres se retrataram como ajudantes ignorantes. Em outros casos, as mulheres deram depoimentos diretos insensíveis sobre o que tinham visto e vivenciado, pois o interesse dos promotores estava nos crimes de seus colegas e maridos. A escritora Wendy Lower afirma que genocídio também é assunto das mulheres: “Tendo ‘oportunidade’, as mulheres se aliam a ele, mesmo em seus aspectos mais sangrentos.”

Já se conhecia a capacidade violenta das mulheres, e até mesmo a capacidade de matar, mas pouco se sabia sobre as circunstâncias e pensamentos que transformam mulheres em genocidas, os papéis que tiveram no sistema e os comportamentos que adotaram. O Mês da Mulher é um momento apropriado para recordar a importância de ver mulheres não apenas como vítimas em uma sociedade masculinamente organizada, isto é, patriarcal, mas também como agentes, no sentido positivo e negativo. Essa reflexão possibilita perceber o quê os seres humanos – homens e mulheres – são capazes de acreditar e fazer.

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