Homenagear um Justo

Em um mundo em completo colapso moral, uma pequena minoria reuniu coragem extraordinária para defender os valores humanos

As atitudes em relação às vítimas durante o Holocausto variaram entre a indiferença e a hostilidade. Na categoria dos “observadores”, encontram-se pessoas que acompanhavam como seus antigos vizinhos eram mortos e até os que colaboravam com os perpetradores. Em um mundo em completo colapso moral, uma pequena minoria reuniu coragem extraordinária para defender os valores humanos. Estes foram os “Justos entre as Nações”. Ao contrário da tendência geral, estes salvadores consideravam as vítimas como seres humanos, e suas ações faziam parte de uma obrigação ética num mundo não determinista. É o que a professora Helena Lewin chamou de “solidariedade em tempos sombrios”.

O conceito de “Justos entre as Nações” (chassidei umot haolam, em hebraico) vem da tradição judaica e remonta ao tempo bíblico. Todos os anos durante a festa de Pessach, os judeus lembram a filha do Faraó que desafiou suas ordens de jogar os meninos hebreus nas águas do Nilo, violou o decreto do pai e salvou Moisés. Ao ver o recém-nascido no cesto, ela o escondeu e o criou como seu próprio filho. De atitudes heroicas com a da filha do Faraó, surgem perguntas: Como um ser humano pode vencer seu instinto de sobrevivência? Quando o natural seria fugir das chamas, como arriscar sua vida e a de seus próximos em nome de valores maiores do que manter a própria vida? O heroísmo não é a regra, e sim sua exceção.

Os Justos representam o repositório do conhecimento sobre o ser humano – tanto do saber amargo sobre o lado iníquo, quanto do saber glorioso sobre a bondade antinatural de que o homem é capaz ao cuidar dos seus irmãos. O relato sobre os Justos é também o relato sobre os valores, sobre a sua fragilidade e sobre a necessidade de preservar estes princípios em uma sociedade que parece cada vez mais abdicar da sensibilidade. Vale lembrar que as narrativas que trazem o altruísmo sempre vêm acompanhadas de descrições sombrias. O medo, a chantagem, a vileza e a crueldade se entrelaçam aos atos mais nobres. Por isso, a importância de honrar os indivíduos que escolheram ir contra as massas em nome daqueles valores que faltaram aos indiferentes ou aos que perseguiram as vítimas.

Desde 1963, o Museu Yad Vashem, em Jerusalém, já levantou diversos nomes – entre homens e mulheres, católicos romanos e russos ortodoxos, batistas e luteranos, enfermeiras e babás, colegas e vizinhos, empregados e amigos – que arriscaram suas vidas e as vidas de suas famílias para salvar judeus perseguidos. Tais pessoas ignoraram as leis, opuseram-se à opinião pública e decidiram fazer o que lhes parecia certo. De acordo com a tradição judaica, “quem salva uma vida, salva o mundo inteiro”.

Até hoje, o Museu Yad Vashem reconhece e homenageia novos Justos. Eles são condecorados (mesmo post mortem), recebem um certificado de honra e o privilégio de terem o nome adicionado ao Jardim dos Justos. Dois brasileiros fazem parte deste hall: Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa e Luiz Martins de Souza Dantas. Há, no entanto, outra pessoa com uma ligação direta com o Brasil, a qual só foi descoberta recentemente.

Carlos Reiss, coordenador-geral do museu, e António Sousa Mendes.

Aristides de Sousa Mendes era cônsul português em Bordeaux, na França, quando esta foi invadida pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Ele expediu dezenas de milhares de vistos, salvando a vida de inúmeros cidadãos (judeus ou não) da Espanha, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, França, Polônia, Tchecoslováquia e Áustria. Por este motivo, foi considerado um Justo. O que poucos sabem é que Sousa Mendes havia sido cônsul de Portugal em Curitiba entre os anos de 1918 e 1919 – tendo aqui, inclusive, nascido uma de suas filhas.

A convite do Museu do Holocausto de Curitiba e da Comunidade Israelita da Paraná, a capital paranaense recebeu a ilustre visita de António Moncada Sousa Mendes, neto do diplomata português. Em comemoração ao seu legado, o Centro Israelita do Paraná promoveu a exibição do filme O Cônsul de Bordéus (2012), um bate-papo presencial com o neto do diplomata, uma atividade online e o descerramento de uma placa comemorativa, a qual foi colocada dentro do museu. Esta última iniciativa contou com a presença de diferentes autoridades comunitárias e governamentais.

Segundo António, estar em Curitiba para prestar uma homenagem como esta tem um valor místico. “É como se eu recuasse mais de 100 anos, tento encontrar os traços completamente apagados dos meus avós e do meu pai. As partes físicas desaparecem, as únicas marcas que consegui achar são as espirituais, do coração, que me trazem felicidade”, afirmou durante os eventos de celebração.

Susana Pereira, vice-cônsul de Portugal em Curitiba, descreveu uma sensação similar quando soube da presença de Sousa Mendes na cidade. “Foi como se eu tivesse uma responsabilidade no meu trabalho que era honrar e ajudar a preservar a memória dele. Isso foi muito impactante e inspirador”, comentou, ressaltando que as ações do diplomata são ainda mais relevantes quando se pensa no contexto histórico, político e social em que ele vivia.

Para salvar a vida de mais de 30 mil pessoas, Sousa Mendes precisou desobedecer a ordens do ditador António Salazar. Isto lhe fez cair em desgraça em Portugal, sendo consequentemente destituído de suas funções. Ele viveu na miséria até sua morte, em Lisboa, em 1954 – com 69 anos de idade. “É uma gratidão enorme que devemos ter com ele, com seus descendentes. Por isso, este tipo de ação só engradece todo o trabalho que fazemos aqui”, declarou Miguel Krigsner, presidente da Associação Casa de Cultura Beit Yaacov, entidade mantenedora do museu, e descendente de sobreviventes do Holocausto.

A vinda de António Moncada Sousa Mendes faz parte da programação de aniversário de 10 anos do Museu do Holocausto de Curitiba. Confira o debate do qual ele participou em:

https://www.youtube.com/Kehil%C3%A1PR

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