Aracy: O Anjo de Hamburgo é uma mulher

Mesmo sabendo que corria risco de prisão conseguiu salvar a vida de muitas pessoas na Alemanha nazista

Em 28 de fevereiro deste ano, completaram-se 10 anos da morte de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, uma mulher à frente de seu tempo. Ainda que nascida em 1908, quando as imposições à vida das mulheres eram tão mais limitantes, decidiu sempre escutar seus desejos, mesmo sabendo que, para isto, teria que enfrentar muitos obstáculos. Mas, apesar de ter escolhido caminhos mais difíceis e, certamente, mais arriscados, pode-se dizer que foram as suas escolhas que preservaram a vida de muitas pessoas.

Natural de Rio Negro, no Paraná, era filha de pais alemães. Também extremamente inteligente e poliglota. Falava português, francês, inglês e alemão – o que não era comum entre garotas naquela época. E foi este fato que possibilitou o seu improvável futuro. Com 22 anos, casou-se com o alemão Johann Eduard Ludwig Tess, com quem teve um filho, que chamou de Eduardo. Mas Aracy decidiu se separar. Em 1934, o divórcio ainda não era reconhecido no Brasil, além de extremamente incomum e mal visto. A mulher separada era tratada de forma hostil.

Para fugir do preconceito que enfrentaria por sua corajosa decisão, mudou-se para a Alemanha. Mais especificamente para Hamburgo. Lá, foi morar com a sua tia e, justamente por ser poliglota, conseguiu um cargo no consulado brasileiro da cidade. Ela manejava os passaportes e vistos de pessoas que desejavam imigrar para o Brasil. Essa função caiu nas mãos da pessoa certa, porque, em 1937, o governo Vargas passou a restringir a entrada de judeus no país e Aracy decidiu, novamente, não seguir as normas que não considerava corretas.

Como era ela quem repassava documentos que precisavam ser assinados pelo cônsul, clandestinamente conseguia colocar os vistos que concedia a alguns judeus entre os papéis. Os passaportes de judeus tinham uma letra “J” carimbada que, até hoje, não se sabe como ela omitia. Com isso, Aracy, mesmo sabendo que corria risco de prisão e, talvez, até mesmo de vida, conseguiu salvar muitas pessoas – o número exato nunca foi levantado.

No trabalho também conheceu seu segundo marido, João Guimarães Rosa. Era cônsul adjunto no mesmo consulado e, futuramente, se tornou um grande escritor da literatura clássica brasileira. Ficaram na Alemanha até 1942, ano em que o Brasil rompeu suas ligações diplomáticas com o país e se juntou aos Aliados da Segunda Guerra Mundial. Porém, mesmo a sua chegada ao Brasil não foi pacífica. O casal ficou detido pelo governo alemão por quatro meses, até que foi substituído por dois diplomatas. O casamento oficial teve que se passar no México, porque o divórcio ainda não era reconhecido no Brasil e, teoricamente, Aracy ainda era casada aqui. Guimarães Rosa faleceu em 1967, e ela não se casou novamente.

Além de ter sido parte da resistência ao Holocausto, também o foi na ditadura brasileira. Em 1968, durante o AI-5, escondeu em sua casa Geraldo Vandré, autor da histórica música “Pra Não Dizer que Não Falei de Flores”, mesmo que, em seu prédio, morassem alguns oficiais da polícia. Faleceu em 2011, aos 102 anos, em São Paulo, de causas naturais, mas acometida por um severo caso de Alzheimer. Foi sepultada ao lado de seu marido. É uma, entre dois brasileiros, a ser reconhecida como “Justa Entre as Nações” pelo governo de Israel. Esse título é dado àqueles que se arriscaram para salvar as vidas de vítimas do Holocausto, sem ganhar qualquer coisa em troca.

Mesmo com sua importância, teve maior visibilidade apenas depois de sua morte. Hoje, Aracy também é conhecida como “O Anjo de Hamburgo”. Uma série com este mesmo nome está sendo produzida para contar a sua história, assim como fez o documentário Esse Viver Ninguém Me Tira, com a participação de seu filho, e o livro Justa, de Mônica Schpun. Uma parceria entre Museu do Holocausto de Curitiba, a UFPR e algumas instituições internacionais recebe o nome “Centro Aracy Moebius de Carvalho de Pesquisa em Humanidades”. O Museu, inclusive, no ano passado, promoveu alguns webinars com a participação da autora do livro mencionado acima e o coordenador do Centro.

Aracy foi contemporânea de outras mulheres importantíssimas na luta feminina, que fizeram teoria. De alguma forma, se uniu a elas para fazer, também, a prática. Enquanto Beauvoir, na França, se opunha às designações domésticas impostas à mulher, Aracy escolheu o divórcio e o trabalho. Enquanto Beauvoir explicava que a existência da mulher é determinada pelo olhar masculino, Aracy burlava as leis criadas por esses mesmos homens. Não é possível dizer que escapou à opressão, porque isto não é possível, já que a mesma é imposta. Mas, sustentada por alguns privilégios, fez uso deles para o bem coletivo, mesmo que isso significasse sacrificar-se.

Sua neta, uma vez, disse que “vovó não era uma mulher em preto e branco”. Sempre usava vestidos floridos e um batom vermelho – item que foi proibido por muito tempo, por ser considerado imoral. Talvez porque sempre foi associado a mulheres fortes – o que, de fato, Aracy era. Símbolo de resistência, foi, inclusive, distribuído àquelas que marchavam pelo direito ao voto. O mês da mulher é, sim, para reconhecer e celebrar as conquistas já alcançadas. Mas é, acima de tudo, para refletir sobre o longo caminho a ser percorrido para a emancipação feminina.

Mesmo enquanto mulheres importantes ainda amadureciam a denúncia dos papéis de gênero impostos na sociedade, Aracy escolheu seguir outros caminhos. Nem sempre os mais fáceis, ou mais pacíficos. E, provavelmente, enfrentou oposições duras. Se, em 2021, a sociedade ainda não está preparada para mulheres revolucionárias, estava muito menos em 1940. Não teve pudores ao ir contra o sistema ou contra as leis. Se opôs à opressão alheia e à sua própria – e, com isso, fez história.

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