90 anos de Dachau: reflexões acerca dos desafios dos memoriais em campos de concentração

É preciso enaltecer o trabalho dos sobreviventes, pesquisadores e educadores que transformaram Dachau em um local que rememora as vítimas

Há noventa anos, em 22 de março de 1933, foi criado Dachau: o primeiro campo de concentração nazista. Após sua liberação, o espaço foi reapropriado e transformado em um memorial que, até os dias atuais, trabalha para manter viva a memória de todas as atrocidades cometidas no local, como um alerta para as gerações posteriores do perigo do ódio e da intolerância.

O campo de Dachau não foi o primeiro espaço a ser reapropriado e transformado em memorial. Entretanto, na data de aniversário do seu estabelecimento, seu exemplo pode nos apontar diversas reflexões acerca dos desafios que memoriais como esse enfrentam na elaboração de uma mensagem que seja capaz de contemplar a violência cometida, honrar a memória das vítimas e educar os visitantes.

Dachau, o primeiro campo de concentração

Dachau foi inaugurado pouco após a nomeação de Hitler a chanceler em 1933. O campo foi estabelecido no terreno de uma fábrica abandonada de munição e, inicialmente, foi criado para abrigar prisioneiros políticos que se opusessem ao partido nazista. O espaço também atuou como uma espécie de escola de opressão para os membros do SS e foi um local onde inúmeros experimentos médicos ocorreram. Ele foi o modelo para campos de concentração posteriores.

O processo de adaptação da fábrica a um campo foi realizado pela exploração do trabalho forçado dos prisioneiros, que se intensificou em 1937 devido à incorporação de mais grupos enviados ao local – testemunhas de Jeová, homossexuais, ciganos e judeus.

O ano de 1938 foi muito marcante para o complexo: sua construção havia sido finalizada e o número de prisioneiros cresceu após o encarceramento de mais de 10 mil judeus no período que seguiu a Noite dos Cristais. Muitos desses prisioneiros acabaram sendo liberados após a comprovação de que deixariam a Alemanha, mas muitos seguiram enclausurados e expostos às condições degradantes de trabalho e sobrevivência no campo.

Aqueles que sobreviveram à toda a brutalidade conheceram a liberdade novamente somente em 1945, quando o campo foi liberado pelas forças militares estadunidenses. Ainda que não fosse um campo de extermínio propriamente dito, é difícil determinar com exatidão quantas mortes ocorreram no local. Estima-se que o número beire entre 28 e 41 mil pessoas que faleceram por desnutrição, doenças, assassinato ou por outras consequências do encarceramento.

A criação do memorial de Dachau

Com o fim da guerra e a liberação do campo, um grupo de sobreviventes se reuniu para fundar o Comitê Internacional de Dachau. Graças ao esforço do comitê e do financiamento do governo da Bavária, em 1965 o espaço de Dachau foi reapropriado e nele foi estabelecido um memorial: um local de alerta, de memória, de luto, de lembrança e de educação. Intitulado KZ-Gedenkstätte Dachau (Memorial do Campo de Concentração de Dachau), o espaço tem como objetivo fazer uso do local para educar gerações futuras acerca da violência cometida contra os prisioneiros. A carga histórica e emocional que o campo evoca é utilizada para facilitar a discussão acerca dos crimes nazistas e do perigo dos discursos de ódio.

O memorial utiliza seu espaço físico nas exposições para abordar a rotina do campo e o sofrimento ao qual os prisioneiros eram submetidos. São inúmeras as estratégias de comunicação, como a utilização de um aplicativo de celular que permite que o usuário aponte a câmera para um espaço e nele sejam recriadas imagens do local na época de seu funcionamento original. Além disso, recentemente foram desenvolvidas exposições e visitas virtuais que permitem transmitir a mensagem educacional e histórica para qualquer um que tenha acesso à internet, em qualquer lugar do mundo.

Reflexões acerca dos desafios dos memoriais

No período posterior a 1945, a memória passou a exercer um papel significativo nos processos de ensino e de pesquisa da história. Entretanto, a abordagem de um evento traumático da dimensão do Holocausto impunha um desafio: a dificuldade de sua representação. Para além da discussão da moralidade e ética de sua representação tanto na mídia, quanto na academia, era também um problema de linguagem. Que termos seriam usados para comunicar a experiência vivida? Como comunicar todo o sofrimento e desumanização de uma forma respeitosa com as vítimas, mas ainda assim fidedigna? A criação de memoriais facilita esse processo, sobretudo quando estão situados nos locais onde a violência foi perpetrada. O espaço é, por si próprio, a lembrança materializada dos crimes cometidos.

Com o fim da Segunda Guerra, passado os julgamentos de Nuremberg, muitos sobreviventes passaram a se articular e se reunir com representantes governamentais para transformar os campos de concentração em memoriais. O processo de concepção desses memoriais muitas vezes foi lento, sendo inaugurados para o público geral por vezes décadas após a liberação. Apesar disso, seu número é expressivo: Sachsenhausen, Bergen-Belsen, Rivesaltes, Auschwitz, Mauthausen, Sobibór, Ravensbrück, Buchenwald, Dachau, entre inúmeros outros.

A transformação desses espaços em memoriais tem como propósito não a superação, mas um acalento da memória de um passado traumático, a certeza da tentativa de manter a lembrança viva e de honrar não apenas os sobreviventes, mas também aqueles que pereceram; é o esforço para a produção de uma narrativa que incentive a consciência histórica dos espectadores e que permita a educação de gerações posteriores acerca do perigo do ódio. A organização da exposição dos memoriais permite ainda a homenagem e a rememoração de grupos tradicionalmente marginalizados, que não foram contemplados pela reparação governamental, mas que foram diretamente afetados e perseguidos pelo nazismo. Além disso, eles permitem o confronto com o passado por meio da existência de uma prova inegável da brutalidade. Apesar de tudo isso, é fundamental compreender que o local comunica muito por si próprio, mas não comunica tudo.

A busca pelo modo apropriado para abordar esses temas não é algo definitivo, não é uma receita universal, mas algo que deve ser constantemente reinventado e reavaliado. Os memoriais têm o desafio de avaliar qual abordagem será a mais eficaz para que a mensagem que o espaço reapropriado busque veicular seja coerente e contemple as questões contemporâneas que necessitam ser abordadas.

Apenas a potência da localização não é o suficiente, é preciso que a organização do espaço saiba quais são os perigos que ameaçam a integridade dessa memória e como enfrentá-los de maneira didática, quais são os desafios contemporâneos que dificultam a educação do tema.

Antes de tudo, o espaço memorial deve ser flexível, deve saber interpretar o tempo e o espaço em que se insere com todas suas demandas e especificidades. Isso porque o passado é um fato, mas a memória sobre ele é uma construção contínua que está constantemente cercada por disputas que podem muitas vezes ameaçar sua integridade com negacionismos, discursos de ódios e teorias conspiratórias. Por isso, é necessário que as instituições trabalhem continuamente de forma a criar uma memória ativa, se projetando para além da preservação do local como evidência do ocorrido, mas encontrando meios de explorar o passado de uma forma que faça sentido para os espectadores no presente.

Na data que marca os 90 anos do estabelecimento do primeiro campo de concentração nazista, nos parece natural enaltecer todo o trabalho dos sobreviventes, pesquisadores e educadores que se dedicaram a transformar o campo de Dachau em um local que rememora as vítimas, ao mesmo tempo em que denuncia constantemente as atrocidades cometidas pelos perpetradores. Ainda que sua existência não seja por si só uma garantia de um futuro mais tolerante, um memorial deste porte – e todo o esforço envolvido em sua criação e concepção – é um espaço fundamental no processo educacional, histórico e cultural da valorização da memória dos sobreviventes. É por meio dessa construção constante e ativa da memória do Holocausto que o imperativo do “nunca mais” se propaga e se fortalece.

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