A repetição que faz embotar nossos olhos cansados

Reflexões sobre a obra de Alfredo Jaar e o Brasil atual

A exposição 100 vez Nguyen do fotógrafo e cineasta chileno engajado em causas sociopolíticas Alfredo Jaar foi exibida até o mês passado na 34.ª Bienal de São Paulo. Ao adentrar a sala da exposição se via uma centena de imagens figurando uma mesma menina. O retrato de Nguyen Thi Thuy foi feito em 1991 em um centro de refugiados vietnamitas de Hong Kong.

A sensação de repetição causada pela imagem da mesma menina em cinco poses semelhantes remete de maneira imagética ao que sentimos diante da repetição maçante: nos acostumamos.

A mesma pessoa ou a mesma questão repetida ad nauseam parece delimitar um véu sobre a natureza da realidade intrínseca. Se são milhares de refugiados, milhares de mulheres mortas por feminicídio ou milhares de falecimentos devido à pandemia, o véu se estende indiferente homogeneizando assim milhares de pessoas diferentes e únicas por detrás da abstração das palavras.

Fotos: Guilherme Zawa.

Desta forma não adiantaria se Jaar colocasse o retrato de cem refugiados, pois talvez não conseguiríamos lembrar que se tratam de pessoas diversas vivendo uma mesma questão de vida.

A repetição da menina nos aponta para o coração deste problema ao passar por cima da ausência de mais detalhes, nos levando até o que não vemos, mostrando por aquilo que não é mostrado, escancarando o que não enxergamos ao realizar a repetição. Em não mostrar cem diferentes rostos com suas peculiaridades acabamos finalmente pensando no que não queríamos ver saltando diretamente sobre nossa indiferença congelada.

São 100 vidas, 100 meninas, 100 problemas. A obra é na verdade sobre nossa indiferença e eu penso que tem a ver com o Brasil inadmissível que deixamos acostumar com olhos embotados.

Dizer “milhares de mortos por COVID” ou “a taxa de pobreza no Brasil subiu para 35%” é insignificante. Precisamos reduzir a escala para um simples humano com um nome e uma história. Isto ajuda a nos identificarmos com a pessoa e é fundamental para criar envolvimento intelectual baseado na empatia e na solidariedade.

São 100 vidas, 100 meninas, 100 problemas. A obra é na verdade sobre nossa indiferença e eu penso que tem a ver com o Brasil inadmissível que deixamos acostumar com olhos embotados.

Recentemente me hospedei no bairro República, em São Paulo, e fiquei estarrecido duas vezes. A primeira com o número de moradores de rua da capital paulista e a segunda com o quão rápido me acostumei com a paisagem.

São 624 mil mortos por Covid-19 e são 27 milhões na pobreza, mas precisamos olhar 100 vezes para apenas uma pessoa até entender o que isso significa.

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