Embora o atual (des)governo federal esteja mais para ópera-bufa ou comédia pastelão, há quem tenha lembrado de um dos filmes nota 10 de Glauber Rocha (1939-1981): Terra em Transe (1967). Nele, temos Porfírio Diaz, o mau caráter que detesta seu povo e pretende se tornar imperador de Eldorado, um país localizado na América do Sul.
E é do cineasta baiano o grito de guerra:
– Câmera na mão e uma ideia na cabeça. Mais fortes são os poderes do povo!
O filme motivou muitos debates e controvérsias – em termos culturalmente elevados, respeitosos, o que, hoje, certamente, seria muito difícil de ocorrer.
Proibido aqui e lá fora
Com roteiro do próprio Glauber, o filme foi proibido em todo território nacional pela tal revolução redentora de 64. Para os donos do poder, sempre de plantão, Terra em Transe era subversivo e irreverente até com a Igreja – e só seria liberado com a condição de que fosse dado um nome ao padre interpretado por Jofre Soares. No poder, diante da câmera, estava Porfírio Diaz, nome de um ditador que mandou e desmandou no México por 31 anos. Finalmente liberado pela censura da ditadura civil/militar, o filme marcou sua estreia no dia 19 de maio de 1967, no Rio de Janeiro. Já em Portugal, permaneceria proibido até 1974.
O senador Porfírio Diaz (Paulo Autran) vive trombando com homens que querem o poder e resolvem enfrentá-lo. No meio do tiroteio está o jornalista (e poeta) Paulo Martins (Jardel Filho). Sofrendo para exercer (corretamente) a sua profissão.
Filme para sala de aula
Em novembro de 2015, por conta da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), Terra em Transe passou a integrar a lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Tanto que, em artigo publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, edição de abril de 2015, o professor Sander Cruz Castelo, da Universidade Estadual do Ceará, defendeu a exibição do filme em sala de aula, “o que favoreceria o ensino de História”. Com Terra em Transe, destacou, “Glauber ataca todos os interesses do tempo do golpe civil-militar de 1964”. Para o professor, o filme “favorece a reflexão social e política”.
De Glauber:
– Não tenho pretensões de fazer grandes filmes. Tenho apenas a justa ambição de expressar a minha realidade da maneira que posso expressar. Viso todas as camadas do público. Se meus filmes são às vezes herméticos, reconheço que isso é uma falha minha. Mas só me sentirei bem com o cinema no dia em que, sem fazer concessões à pornografia e ao mau gosto, atingir o público. (…)
– Terra em Transe é um filme sobre política e é um filme político. Ele não contém mensagens acabadas, eu não sou professor. É um espetáculo sobre política, um espetáculo sobre os problemas morais da política, um espetáculo sobre a consciência política e um espetáculo sobre os movimentos políticos.
– Técnica de filmar? Improviso total com os atores e a câmera. Mas, antes, dois anos de roteiro, 700 páginas escritas e reescritas. Depois podemos improvisar à vontade, recriando o mundo, a atmosfera, os sentimentos.
– O cinema vem do ator, do ar, da luz, dos cenários, do humor da equipe, da alegria ou da tristeza, do cansaço ou da disposição.
Da censura à prisão
Terra em Transe foi indicado para a mostra competitiva do Festival de Cannes apesar da oposição do Itamaraty, que indicou para o festival a comédia Todas as Mulheres do Mundo, de Domingos de Oliveira.
Glauber foi preso em novembro de 1965 por participar do protesto contra a ditadura durante uma reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Rio de Janeiro. Ficou preso durante 23 dias.
De 1971 a 1976, banido pela ditadura civil-militar, viveu no exílio.
Terra em Transe conquistou o Prêmio da Crítica do Festival de Cannes, o Prêmio Luis Buñuel, na Espanha, o Prêmio de Melhor Filme do Locarno International Film Festival e o Golfinho de Ouro de melhor filme do ano, no Rio. Já com O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1968), Glauber ganhou o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes e, outra vez, o Prêmio Luiz Buñuel, na Espanha.
Imaginem hoje um filme de Glauber sobre o momento político brasileiro.