Quando as palavras cantam

Tudo ao nosso redor soa. Soa com um som próprio, soa num tempo próprio, soa num espaço próprio, e quando soa se apropria de nós

“Mas é uma coisa linda, a reinvenção de uma palavra.”

Doug Rice.

Antes de começar esse texto eu me concentrei por alguns minutos nos sons ao meu redor. Listei:

As teclas sendo digitadas
O ruído da construção
O portão do vizinho
A minha respiração
Um ruído branco constante da existência
O mouse correndo na mesa, por vezes clicando
A cadeira rangendo
A caneta riscando o papel
O celular vibrando
A Jess se mexendo
Passarinhos cantando

Eu dediquei pouco tempo a isso. Quando comecei a digitar a lista percebi que ainda estava bastante atenta aos sons ao redor e poderia ter listado vários sons novos que ouvi. Um específico me chamou atenção – o som das palavras na minha cabeça, identificando o que eu ouvia. Então me perguntei: mas isso é música?

Há uma semana, Murray Schafer, o autor da pergunta que fiz acima, conheceu o silêncio, deixando a vida no mundo dos sons. Schafer foi um compositor e educador musical canadense muito influente no século XX. Ele produziu de maneira volumosa não apenas música, mas também literatura a respeito de novas maneiras de pensar o som, o silêncio e a música. Ele foi um visionário em ressignificar tudo que chega aos ouvidos. Em sua obra O Ouvido Pensante entramos em contato com vários conceitos desenvolvidos por ele, novas maneiras de ouvir, e hoje eu gostaria de te convidar para ouvir música em tudo aquilo que soa, como uma homenagem à vida do artista.

Tente se lembrar de como foi acordar hoje. Tente se lembrar de que som te fez despertar. O que você ouvia enquanto ainda estava tentando abrir os olhos e se recompondo depois do sono? Tente se lembrar de como você se mexeu, de como você se sentiu e do que pensou ao se perceber ali, vivo e desperto. Tente lembrar de seu primeiro pensamento hoje. Escute ele novamente soando em você. 

Tudo bem se não for possível, nossa vida transforma a memória do cotidiano em algo muito rarefeito. Schafer tentava desfamiliarizar os sons. Ouvi-los de outra forma, de outro lugar. Expandir as possibilidades do soar. Então experimente ler esse texto com outra voz na sua cabeça, uma voz que não seja a sua. Se você conhecer a minha voz, tente ler com ela. Será que as palavras mudam quando as ouvimos em outra voz?

Murray Schafer. Foto: reprodução.

E se de repente começássemos a ouvir tudo com um novo tipo de atenção. Se de repente os significados das palavras não importassem, mas importassem como elas soam. Se déssemos atenção a como uma palavra é composta. Como se cada palavra carregasse em si uma música que é interpretada por cada boca, cada língua, cada pessoa.

Experimente dizer seu nome em voz alta e perceba seu gesto. Como seu corpo se mexe para produzir um som? Me chamo Ingrid, e quando falo meu nome percebo a boca numa abertura pequena que constrói In, depois um movimento vibratório de língua para fazer gri e termino levando a língua ao céu da boca e voltando – quase sem voz faço o d. 

Se abrirmos os ouvidos para escutar os sons procurando por música, perceberemos que a riqueza musical do som não está só afinações, está também na diversidade de articulações, intensidades, timbres, fontes sonoras, além de desenhos melódicos, harmônicos e rítmicos. 

Tudo ao nosso redor soa. Soa com um som próprio, soa num tempo próprio, soa num espaço próprio, e quando soa se apropria de nós.

É impossível desligar os ouvidos. Eles nos preservam, nos contam o que está acontecendo longe dos nossos olhos. Todo som pode tomar você por inteiro e te causar diversas sensações. O som tem significado próprio, comunica sem palavras. Mas quando associado a palavra, compomos os sentidos que nos atravessam. Então se toda vez que ouvirmos algo, nos atentarmos a tudo que o som pode transmitir, isso não seria música?

Conheça a música de Murray Schafer – ele conheceu o silêncio, mas não parou de soar. 

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