Reforma eleitoral e liberdade de expressão

Na estreia da coluna Diálogo eleitoral, Ana Carolina de Camargo Clève trata do novo Código de Processo Eleitoral

O espectador atento à dinâmica política e, em especial, ao processo eleitoral, sabe que, nos anos anteriores às eleições, há intenso movimento em torno de mudanças na legislação eleitoral para que todas as alterações, em razão do princípio constitucional da anualidade eleitoral, possam ser aplicadas já no ano seguinte – quando será realizado o pleito. Um fato é certo: todos os anos eleitorais contam com alguma novidade. Por outro lado, nem sempre a novidade é substancial; e nem sempre é positiva. Há vezes em que as alterações operam de modo a reduzir a qualidade do processo eleitoral. Este, contudo, não parece ser o caso da reforma eleitoral que está por vir – vale registrar que, neste artigo, refiro-me às pretendidas alterações no campo infraconstitucional. Não estou a tratar dos temas que devam ser objeto de emenda constitucional.

No Congresso Nacional trabalha-se pela aprovação de um novo Código de Processo Eleitoral. Trata-se de um importante passo para a sistematização das normas eleitorais. Isso porque, atualmente, o Direito Eleitoral é composto por diversos atos normativos (Código Eleitoral; Lei das Inelegibilidades; Lei dos Partidos Políticos; Lei das Eleições; e inúmeras Resoluções editadas pelo Tribunal Superior Eleitoral). A expectativa é que o novo Código (i) organize e sistematize todo o regramento eleitoral; (ii) torne harmônico todo o sistema eleitoral; e (iii) confira maior segurança jurídica ao jogo democrático.

O projeto do novo Código de Processo Eleitoral não se trata de um compilado de regras já existentes. Pelo contrário. Toda a sua construção desenvolveu-se a partir de amplo debate público – seja por meio do diálogo entre Instituições; seja por meio de audiências públicas com a participação de especialistas e entidades dedicadas ao estudo do Direito Eleitoral.

Na estrutura de aproximadamente 900 artigos, vários são os temas a merecer destaque. Na estreia desta Coluna, aproveito meu trânsito entre o Direito Constitucional, Eleitoral e a Ciência Política, para tecer apontamentos sobre o que – no meu sentir – consiste em um dos pilares do processo democrático: a liberdade de expressão – princípio que assume posição de preferência no nosso sistema constitucional (o que a doutrina norte-americana costuma denominar como “preferred position”).

Aliás, nesse contexto, ressalto que, se é certo que o projeto de novo Código visa conferir coesão ao sistema eleitoral, não menos certo é o fato de que, para tanto e antes de tudo o mais, todo o regramento nele presente deve estar em consonância com a racionalidade da Constituição Federal. Prima facie, parece-me que essa tarefa foi cumprida.

Na parte introdutória, ao menos, assenta-se que a “liberdade de expressão, de informação e de propaganda eleitoral” constituem-se como norma fundamental do Direito Eleitoral. Ademais, sob o ângulo do eleitor, constam no projeto – exemplificativamente – algumas prerrogativas inerentes à liberdade para o exercício do sufrágio, tais como: livre manifestação do pensamento; liberdade para difusão de ideias; e a garantia de recebimento de informações plurais por parte dos meios de comunicação.

Além disso, depois de não raras interferências da Justiça Eleitoral no sentido de frear as denominadas “propagandas negativa”, o futuro Código Eleitoral – de modo acertado – expressamente autoriza a crítica e outros comentários negativos dirigidos a candidatos e partidos políticos. Por certo que as críticas – ainda que ácidas – estão sob o a proteção da liberdade de expressão; até porque se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir (George Orwell).

De outro lado, também em observância aos temperamentos estabelecidos constitucionalmente, houve a imposição de limites ao exercício da liberdade de expressão. Nada mais correto. Daí que discursos de ódio, manipulação de informações, fatos sabidamente inverídicos e a intromissão excessiva ou deturpadora da vida íntima dos candidatos, estarão expressamente vedados. Exatamente nesse contexto – acertadamente – incorporou-se ao projeto de Código regra já constante em Resolução do TSE no sentido de que os responsáveis (candidatos ou terceiros) por divulgação de fatos inverídicos ou informações manipuladas ficam sujeitos a sanções de natureza eleitoral, civil e penal.

Das percepções que manifestei aqui, concluo, em primeiro lugar, que há a necessidade de um Código para organizar e sistematizar a legislação eleitoral, conferindo coesão a todo o sistema eleitoral – motivo pelo qual essa reforma faz-se oportuna e adequada. No mais, no que toca à disciplina constitucional da liberdade de expressão, bem de ver que o projeto de Código Eleitoral caminha em sentido correto. Isso porque, a um só tempo, parte da premissa de que, sob a perspectiva do coletivo, “as liberdades comunicacionais e informativas assumem papel estruturante em sociedade liberais e democráticas” (para citar Gustavo Binenbojm); mas, também, não deixa de considerar que em um ambiente de livre expressão pública, o debate sob as bases de informações reais, opiniões razoáveis e – sempre – com igual consideração e respeito ao outro. Tudo isso não é demais. Trata-se do mínimo para o caminhar do avanço civilizatório. Mas os atores devem evoluir junto com a reforma. Não há instituição que resista sem gente comprometida.

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