O segundo corpo

Meu processo de aceitação começou nos grupos de apoio de AVC. Conversar com pessoas que estavam passando pelo mesmo que eu, me tirou aquela percepção de que havia alguma coisa errada comigo

Depois de sobreviver ao derrame, acordei em um novo corpo. Um corpo machucado e não funcional que me fechava diversas portas. Para reaprender a viver depois do meu acidente, tive que aprender a aceitar e amar esse novo corpo. Todo esse processo doeu muito, ainda dói.

Nascer dói. Obviamente não lembro do meu nascimento, mas acredito que a primeira entrada de ar que descolou os meus pulmões deve ter sido dolorosa, assim como a claridade desse mundo tão propenso a cores e barulhos e a frieza da nossa realidade, tão adversa ao ventre materno. Devem ter sido penosas as primeiras semanas de adaptação. Afinal, era outro mundo! Também foram nesses primeiros dias em que dei conta do meu corpo e de todos os meus movimentos. Era tudo diferente. Nascer dói, mas eu me adaptei.

Embora não me recorde do dia 24 de agosto de 1984, o dia em que nasci, tenho flashes de memória do dia 15 de maio de 2019, o dia em que renasci acordando do coma pós-cirúrgico que me salvou do meu AVC hemorrágico. E hoje acho graça, porque imagino que essas sensações foram similares ao meu primeiro dia de vida: estava deitada, vendo as pessoas me observarem do alto para baixo, imóvel, com fralda, não falava e nem tinha ideia de quem era. Pronto: Camila Fabro voltou à vida, e agora era oficialmente desmiolada.

Lembro (também em flashes) da dificuldade que os técnicos tinham em tentar me deixar em pé, porque os pés não se fixavam no chão, e eu sempre tendia a cair para trás. Também me recordo de como foi a tentativa de retirar a sonda nasogástrica e de como fui ensinada a me alimentar de pastas de comida, porque apesar de ter dentes, eu ainda não tinha capacidade de usá-los na alimentação. Foi complicado, mas consegui me adaptar.

Voltar para casa foi a pior parte, pois foi ao ver meus amigos próximos se revezando para cuidar de mim que me dei conta de como era a minha vida antes do acidente, de como o meu primeiro corpo era tão ágil e diferente daquele que agora me embalava. Este segundo corpo era fraco e não funcionava muito bem: não andava da mesma forma, não engolia sem engasgar, tinha lapsos de memória e uma imensa dor no lado lesionado, uma dor aguda e terrível, que mais tarde foi designada como dor neuropática.

Apesar de estar meio careca, com um terrível corte de cabelo improvisado um pouco antes das cirurgias, não me importava com isso. A vaidade ainda não me cobrava nos primeiros dias, até o momento em que me vi no espelho. Na realidade, não foi o cabelo que mais me impressionou, mas a cara de doente (com os olhos fundos e a pele opaca) e o corpo de doente (com as pernas tão finas que sempre se encurvavam quando me colocavam em pé. Apesar das semelhanças, não conseguia reconhecer aquele corpo, não era o meu.

Embora a maioria das pessoas não percebam todas essas diferenças, para mim, elas se destacavam diariamente. A presença de dores, fadiga e uma forte insensibilidade em todo o lado esquerdo do corpo (que me dava a sensação de estar menor, pela metade) me machucavam por dentro, e era impossível novamente não me comparar ao meu primeiro corpo. Fazia isso instantaneamente, durante todas as horas do dia. A mão encolhida no meu tórax também me incomodava: como eu não a sentia e nem a movia, ela me parecia inútil.

Além disso, tinham os comentários que me torturavam. “Você precisa se esforçar”. Meu caro, não existe sobrevivente de lesão cerebral que não se esforce para voltar a ter mobilidade. É humano lutar pela recuperação, assim como é natural lutar pela sobrevivência. Também ouvi muito sobre a minha ingratidão perante a vida recém reconquistada. Hoje vejo que era muito cedo para ter esse tipo de sentimento. Eu vivia um pesadelo, ainda estava em luto pela ausência do meu primeiro corpo, não havia aceitado todas essas mudanças bruscas, aliás, lutava contra elas. Naquela época, ainda não havia espaço para a gratidão. Mas o pior comentário, foi o de que eu estava exagerando, já que muitas pessoas com deficiência nascem assim e não reclamam. Já vivemos em uma sociedade em que a maioria nutre uma insatisfação estética perante o corpo, imagina quando esse corpo não é funcional e te obriga a se arrastar pelo chão porque não tem autonomia para te deixar em pé? Não é tão simples, muito menos comparável.

Se a autocobrança em si já era um bicho de sete cabeças, quando ela partia do outro, era um monstro insaciável por sangue. A gente acha que o problema definitivamente é com a nossa fraqueza e passa a se rejeitar ainda mais. Como a mente ainda está vulnerável e hipersensível, tudo isso é um trem-bala para a depressão, uma das doenças mentais que mais atingem sobreviventes de AVEs.

É difícil manter a autoestima depois de um derrame. Além das dificuldades invisíveis, as visíveis te isolam socialmente. É incrível como automaticamente você deixa de ser atraente quando percebem que você está numa cadeira de rodas ou que aquela bengala encostada é a sua. Nossa, a pessoa foge sem disfarçar. A pouca mobilidade também te afasta dos eventos que antes eram cotidianos: a gente só assiste pelas redes sociais os encontros em que esqueceram de nos chamar. E esses não são casos isolados, acontecem com todo mundo que sofre um AVC. Nesses dois anos conheci cerca de mil pessoas que tiveram derrame e todas elas passaram por essas situações. Todas. Não houve uma que me dissesse o contrário.

Cheguei à conclusão de que todos esses fatores não foram oriundos nem da maldade, nem da negligência alheia, mas da ignorância. A maioria não sabe lidar com o diferente, muito menos com pessoas com deficiência (seja ela visível ou não). Ninguém ensina isso. Por outro lado, também não há muito interesse em aprender. Infelizmente isso faz parte da nossa sociedade.

Meu processo de aceitação começou nos grupos de apoio de AVC. Conversar com pessoas que estavam passando pelo mesmo que eu, me tirou aquela percepção de que havia alguma coisa errada comigo. Percebi que era situação em que me encontrava (a de PCD) que me transformava em alvo para agressões, principalmente as não intencionais, feitas pelas pessoas que eu mais amava. Depois comecei a frequentar grupos de apoio específicos de pessoas com deficiência, que sempre me acolheram e me informaram muito bem. Neles, tive a dimensão da grandiosidade do preconceito com PCDs (capacitismo) e da necessidade que temos de nos proteger e nos acolher. E assim, à medida em que fui aceitando os fatos, fui aprendendo a lidar com o meu novo corpo, hoje amado e respeitado. É claro que todo esse processo demanda um tempo próprio para cada pessoa. Não adianta forçar, nem apressar. Aos poucos fui percebendo que, por dentro, eu ainda era a mesma, e que merecia lutar pelos meus direitos e pela alegria de viver. Pois é, renascer também dói.

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