Diferentes estratégias, um mesmo objetivo: destruir a democracia

O avanço de Bolsonaro sobre as regras eleitorais e a tentativa de intimidação golpista da última terça-feira cumprem funções complementares e similares, garantir a sobrevida, se não exatamente de Bolsonaro, do bolsonarismo

Enquanto deixava morrer milhares de pessoas por falta de vacina e nos distraia, e se distraia, com motociatas, manifestações em defesa do voto “impresso auditável”, desfiles militares e outras demonstrações fálicas compensatórias, Bolsonaro articulava, silenciosamente, um passo importante em sua estratégia de desmonte da democracia.

Tramita na Câmara dos Deputados, com uma agilidade inusual, proposta de Reforma do Código Eleitoral, o Projeto de Lei Complementar 112-21, de autoria da deputada bolsonarista Soraya Santos, do PL carioca. Para vigorarem já nas eleições de 2022, elas precisam ser aprovadas até outubro deste ano.

Porta-voz do governo na Câmara, o deputado Arthur Lira, líder do Centrão e presidente da casa, assumiu a tarefa com disposição. Se o “distritão”, dessa vez, ficou de fora, a proposta, entre outras coisas, limita a atuação do TSE na tarefa de fiscalizar os partidos; flexibiliza regras de inelegibilidade; restringe a divulgação de pesquisas; permite a contratação de empresas privadas para a análise das contas de campanha; e diminui a transparência no uso de recursos públicos pelos partidos.

Se essas medidas, espalhadas ao longo das 372 páginas do PLP, satisfazem a ânsia fisiologista dos políticos do Centrão e adjacências, outras mexem em temas mais sensíveis no que tange ao alargamento da democracia representativa.

É o caso da proibição de candidaturas avulsas e do caráter generalista com que são tratadas, no texto, as candidaturas coletivas. E contrariando decisão do STF, a proposta não prevê o repasse mínimo obrigatório de recursos para candidaturas de negras e negros. Não será a primeira vez que as chamadas minorias são prejudicadas por projetos decisões do parlamento que impactam, diretamente, na esfera eleitoral.

Mês passado, uma minirreforma aprovada pelo Senado desobrigou os partidos a destinarem 30% dos fundos públicos de financiamento para mulheres. Sob o pretexto de que é “preciso afastar a ideia de que somente as cotas assegurarão a participação feminina nas eleições”, e de “combater o uso de candidaturas femininas” como instrumento de cooptação de “candidatas que não tem efetivo interesse em concorrer”, absolve aqueles que não cumprirem as cotas de gênero, vigentes desde 2009.

Não é minha intenção hierarquizar o avanço de Bolsonaro sobre as regras eleitorais, em detrimento da tentativa de intimidação golpista da última terça-feira. Cada qual a seu modo, elas cumprem funções similares e complementares, a de garantir a sobrevivência, se não exatamente de Bolsonaro, do bolsonarismo, um fenômeno político que extrapola a persona presidencial, e que por isso é mais perigoso e perverso que ele.

No caso da minirreforma e da proposta de reforma do Código Eleitoral, por exemplo, o cerceamento da participação de mulheres e negros reafirma uma estratégia política executada, com algum rigor e método, por Bolsonaro, mas que é marca registrada de lideranças autoritárias, como Viktor Órban, na Hungria, que já elogiou o presidente brasileiro como “a mais apta definição da democracia cristã moderna”.

Trata-se, grosso modo, de minar desde dentro mesmo os mais pálidos e formais pilares da democracia, aparelhando, atacando ou desacreditando instituições, perseguindo inimigos, intimidando a imprensa e as oposições, criminalizando movimentos sociais e cerceando os espaços e alternativas de participação e debate público.

Se graças à sua inabilidade política – e não porque as instituições lhe puseram freios e contrapesos – não conseguiu, como Órban, usar a pandemia como pretexto para decretar um Estado de Emergência, Bolsonaro se aproveitou do ambiente caótico que ele principalmente ajudou a instaurar, para passar as muitas boiadas que lhe interessam. A reforma do Código Eleitoral é uma delas.

Principalmente desde 2013, um movimento de renovação vem se firmando como um dos principais legados das chamadas Jornadas de Junho, que a esquerda partidária, notadamente o PT, ainda insiste em desqualificar como a “antessala do golpe”.

Ecos da revolta, por outro lado, se fizeram e se fazem sentir nas manifestações de 2014 contra a Copa; nas ocupações secundaristas de 2015 e 2016, em São Paulo e no Paraná; nas reivindicações dos movimentos negros, feministas e LGBTs; nos crescentes movimentos culturais das periferias; ou no “Ele Não”, o mais vigoroso movimento de denúncia dos perigos de Bolsonaro e do bolsonarismo, liderado pelas feministas.

Essas mudanças repercutiram, também, no âmbito institucional, com o crescimento, principalmente nos últimos dois pleitos eleitorais, de candidaturas oriundas das chamadas “minorias” e dos mandatos coletivos.

Pode-se argumentar que isso tudo ainda é pouco. Mas em um país de cultura democrática tão débil, avanços que permitam o alargamento da democracia formal e representativa podem servir, de um lado, de freio ao autoritarismo das elites e do Estado e, de outro, como possibilidade de garantia de direitos, de criação de novas possibilidades de participação e garantia de liberdades.

Por isso interessa a Bolsonaro e seus cúmplices, tanto quanto o desfile patético de veículos militares, minar esses novos espaços que se abriram, com muita luta e apesar do nosso degradado ambiente político. E também por isso nos interessa assegurá-los contra os arautos dessa nova forma de fascismo a que chamamos bolsonarismo.  

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