Faculdade

Quando sofremos uma lesão cerebral e temos como consequência um distúrbio de linguagem, podemos ser considerados afásicos

Repetições de palavras ou expressões são comuns na vida de quem sofreu um AVC. Trata-se de um traço da afasia, um distúrbio de linguagem. Alguns de nós, sobreviventes, inconscientemente insistimos numa determinada palavra, que se destaca no nosso comunicar. A minha era “faculdade”.

Semanas após os meus AVCs, eu ainda apresentava alguns problemas de linguagem. Como eu pensava em francês desde que acordei do coma, todas as minhas palavras em português tinham uma entonação afrancesada, o que dificultava a minha comunicação. Para mim era difícil me expressar em português, porque esta língua não me soava natural. A sensação era de estar me expressando em uma língua estrangeira: tinha dificuldade em encontrar certas palavras e errava muito as conjugações e regências. Tudo era muito complexo na minha cabeça, exceto por uma palavra: FACULDADE.

Quando sofremos uma lesão cerebral e temos como consequência um distúrbio de linguagem, podemos ser considerados afásicos. Existem vários níveis de afasia, e apesar de a minha não ter sido muito severa, ela se caracterizou por essa mistura de idiomas. Engana-se quem pensa que é legal acordar de um AVC pensando em outra língua. Essa substituição me transmitiu uma sensação de não pertencimento à minha cultura, o que, consequentemente, refletiu na minha noção de identidade. Em casa, só conseguia entender prontamente a língua francesa, por isso só ouvia música nessa língua, bem como só conseguia ler nela. E durante todas as noites chorava, porque pensar e entender na língua errada, me trazia uma forte impressão de incapacidade.

Basicamente, a tecla SAP para a minha volta ao português tinha um nome: “FACULDADE”. Esta era a minha palavra-vício, que é um termo que muitos afásicos falam sem querer o tempo todo e com várias entonações. É como se fosse uma palavra “coringa”, que é substituída automaticamente pelo cérebro para designar pessoas, objetos e lugares que não conseguimos mais nominar. Não percebemos essa substituição prontamente, por isso repetimos tanto essa determinada palavra fora de contexto. É bem esquisito mesmo.

Por eu falar tanto “FACULDADE” em minhas conversas (e receber estranheza do interlocutor como resposta), fui percebendo seu uso desproposital, e comecei a tentar substitui-la por outro termo mais adequado. Isso era muito difícil, porque na hora a minha mente simplesmente ficava vazia e eu entrava uma espécie de “buraco negro de ideias”. Porém, eu sabia que este era o caminho da minha reabilitação, já que justamente aprendi isso na… FACULDADE.

Foi durante o meu primeiro ano de Letras, em 2003, que meu avô teve um AVC isquêmico e ficou afásico. Eu era bem próxima dele. Na verdade, como foi ele quem me criou, o tenho em meu coração como pai. E como sua “filha” caçula, tentava ser forte e o ajudar, mas não sabia como. Então, descobri que havia uma matéria chamada Neurolinguística que abordava a reabilitação da linguagem após uma lesão cerebral, e instantaneamente, procurei saber como poderia cursá-la, mas o caminho até chegar a ela era longo. Como era uma disciplina muito complexa, para estudá-la, precisava fazer algumas disciplinas específicas antes, que são chamadas de “pré-requisitos”.

E assim, comecei a estudar arduamente uma área de estudo que inicialmente me trazia certo desconforto: a Linguística. Trocando em miúdos, Linguística é uma ciência que estuda como a língua, fala e linguagem funcionam, e todo esse processo é muito complexo, porque envolve desde a construção de fonema até como e porque usamos certas expressões em sociedade. Não era uma área convidativa para mim (preferia mais a literatura), mas ela era o caminho para eu entender a tal da afasia, que aprisionava o meu avô.  O meu amor por ele foi o motivo que fez com que eu me matriculasse nessas disciplinas até, finalmente, poder entrar na classe de Neurolinguística, durante o penúltimo e último ano do meu curso.

Nesta disciplina, eu e meus colegas aprendemos o funcionamento básico do cérebro e de como ele reage quando sofre distúrbios de linguagem por meio de um AVC ou outra lesão cerebral. Eu devorava os livros, mas tudo aquilo ainda era muito pouco para mim. Como meu namorado na época cursava Medicina, eu pedi para ele me emprestar os seus livros de Neurologia e passei a estudar com ele. Até que um dia eu fiz uma prova em que relacionava os distúrbios ao funcionamento do cérebro utilizando a linguagem técnica de Neuroanatomia, e fui chamada no gabinete da professora responsável pela matéria. Lá, ela me propôs continuar estudando o assunto no Mestrado. Era um sinal de que estava indo bem.

Quis o destino que uma série de infortúnios me impossibilitasse de cursar a pós-graduação, mas todos aqueles conhecimentos ficaram dentro do meu cérebro, que em 2019, mesmo lesionado, tentava me mostrar o caminho da minha recuperação por meio da minha palavra vício, ou melhor dizendo, a minha palavra mágica: FACULDADE. Até hoje acredito que a mensagem que a minha mente queria transmitir era que eu precisava praticar as estratégias aprendidas na FACULDADE para voltar a me comunicar decentemente em português.

Hoje muita gente acredita que, por eu escrever bem, minhas lesões foram leves. Isso não é verdade, eu apenas tive a sorte de saber que havia um caminho, e passei a treiná-lo incansavelmente todos os dias com exercícios de caligrafia, leitura, montagem de frases, falar muito (o tempo todo) e exigir que me corrigissem a qualquer sinal de “afrancesamento” ou repetição da palavra “FACULDADE”. Por isso é tão importante que o paciente tenha consciência dos percursos da reabilitação e de como eles são construídos em um cérebro machucado. Nesse processo, regressões acontecem, porque elas fazem parte da reabilitação, e nunca devem ser vistas como fracassos. Entender esse tipo de coisa faz toda a diferença na nossa luta diária. Pelo menos, é uma maneira de não nos frustrarmos tanto diante do retorno de algumas limitações.

Ironicamente (ou não), também foi na FACULDADE que aprendi a língua francesa e era simplesmente péssima nela, tanto que, para alcançar a média, foi necessário que eu estudasse francês incansavelmente todo dia (até nos domingos e feriados). Fiz a mesma coisa durante a minha reabilitação porque entendi desde o primeiro dia que desistir não poderia ser uma opção. Se para aprender francês foi preciso insistir para meu cérebro assimilar todos aqueles acentos e entonações, o mesmo método deveria ser utilizado para que eu voltasse a andar, pensar e falar português.

Frequentar a FACULDADE sempre foi uma dádiva para mim. Era um sonho impossível durante o meu Ensino Médio, porque não tinha condições financeiras nem para pagar um curso pré-vestibular. Eu estudava em um colégio estadual em que não tínhamos aulas todos os dias, geralmente por falta de professores, o que defasou gravemente a minha aprendizagem. Eu já tinha me resignado a terminar os estudos e procurar emprego numa rede de supermercados ou fast-food, quando uma oportunidade de bolsa-trabalho num cursinho apareceu, e me agarrei a ela.

No início do ano letivo, eu era uma das piores da turma, já que não tinha aprendido o básico das matérias. Porém, corri atrás do prejuízo com todas as minhas forças, até que fui recompensada com a minha entrada em uma Universidade Federal. Foram anos de xerox pagos com moedinhas, longas visitas à biblioteca, almoço e jantar diários no restaurante universitário e vários trabalhos como garçonete e babá para pagar livros e cadernos. Todos esses esforços foram na medida certa, eles me ensinaram que, para entender os meus limites, eu precisava me dedicar a todo momento pelo meu propósito, tendo como combustíveis a paixão pelo que eu estava fazendo e a ambição pelo resultado proveniente dele. É preciso trabalhar duro para conquistar o impossível, mas ele pode ser alcançável para um cérebro bem estimulado. Os terapeutas neurológicos sabem bem disso, e eu (graças à FACULDADE) já sabia disso quando tive meus AVCs.

Todo AVCista é capaz de feitos incríveis, não sou uma exceção. Absolutamente todos que conheço utilizam as estratégias aqui mencionadas em sua reabilitação: sair da zona de conforto, não se intimidar com o tamanho do desafio, insistir bravamente nas ações propostas e procurar se transbordar de bons sentimentos, tendo em vista que o cérebro funciona melhor quando tem um propósito emocional. Com afeto tudo flui mais fácil nas batalhas da vida e da reabilitação. Todos nós sabemos disso, já que a amizade e o incentivo nos grupos de apoio são fundamentais em nossa recuperação. E tudo isso ainda nos dá um bônus: essas relações serão guardadas para sempre na nossa memória. FACULDADE.

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