Não vai ter golpe porque o golpe já está em curso

A estratégia de Bolsonaro e seus cúmplices além de tentar, à força, permanecer no governo, é assegurar a sobrevivência do bolsonarismo como fenômeno político, projeto que vem sendo cuidadosamente executado nos últimos quatro anos, por dentro e por fora das instituições

A palavra “golpe” entrou, definitivamente, no léxico político diário. Não chega a ser novidade em um país que conviveu com golpes de todo tipo, mesmo aqueles que são cinicamente chamados de “revolução”. Mas suspeito que, mesmo em décadas passadas, não se falou tanto da ameaça de um golpe como agora.

O vocábulo está aí, diariamente invocado, não tanto nas manchetes e na cobertura jornalística, pois a grande imprensa insiste em falsas equivalências e polarizações inexistentes, mas em colunas de analistas políticos e jornalistas que não temem chamar as coisas pelo nome.

Há razões de sobra para isso. Estamos a poucos meses das eleições, e é notório que o miliciano genocida que ocupa o Palácio do Planalto tenciona, a se confirmar os resultados das pesquisas, mobilizar os recursos de que dispõem, e não são poucos, para inviabilizar a posse de qualquer outro presidente que não ele.

Claro, tampouco isso é novidade. Já sabíamos que estávamos lidando com um fascista em 2018. Na verdade, mesmo antes disso.

O flerte com o golpismo já estava lá, e sabíamos disso. Principalmente sabiam disso os que apostaram tudo em um “segundo turno dos sonhos” e aqueles que, nos últimos quatro anos, alimentaram a besta, de um jeito ou de outro – pela adesão entusiasmada, o alinhamento ideológico, os interesses econômicos ou pela simples indiferença.

E não nos esqueçamos dos que confiaram nas instituições, como se elas fossem suficiente para regular e conter o espectro do fascismo que nos rondava, e daqueles que insistiam em tratar os rompantes autoritários de Bolsonaro como simples “controvérsias” de um presidente dado a “polêmicas”.

Tanto não era que estamos, atônitos, tentando achar uma saída e fingindo acreditar que a luz no fim do túnel não é um trem na contramão em alta velocidade.

No Brasil, a realidade tem superado mesmo a imaginação mais pessimista e toda tentativa de prognóstico corre o risco de ser atropelada pelo tal trem na contramão do parágrafo anterior.

Não vai ter golpe, porque o golpe já está em curso. Quer dizer, Bolsonaro pode e possivelmente tentará um golpe no sentido mais estrito da palavra se perder as eleições, como eu espero que perca. Na sua coluna na Folha dessa semana, o jornalista e professor Wilson Gomes vaticinou, certeiro – até relógio parado dá às horas corretamente duas vezes ao dia –, que o discurso do golpe já é, em si, parte do golpe.

Parece confuso, mas não é. Bolsonaro conseguiu que, ao invés de discutirmos projetos para o país ou mesmo compararmos candidaturas e programas de governo, estejamos todos alertas e temerosos com um anunciado retrocesso autoritário, reduzindo o debate público à pauta única da possibilidade de mais um golpe.

E não apenas o debate público, mas todo o processo eleitoral está contaminado, com as instâncias responsáveis pela condução das eleições seguidamente colocadas em descrédito e intimidadas, inclusive, pelas Forças Armadas e seus generais chapados de Viagra e envaidecidos de suas próteses penianas.

Se as instituições já não estavam funcionando normalmente, apesar da seguidas tentativas oficiais de afirmar o contrário, agora estão menos ainda. Fazer frente ao descalabro, portanto, é uma tarefa que extrapola instituições, partidos e candidaturas, e que não se esgota com o voto.

A estratégia de Bolsonaro e sua quadrilha não se limita a esculhambar as eleições para tentar, à força, permanecer no governo. A intenção é assegurar a sobrevivência do bolsonarismo como fenômeno político, projeto que vem sendo cuidadosamente executado nos últimos quatro anos, por dentro e por fora das instituições.

O lamentável e preocupante é que, para combater a versão tropical do fascismo 2.0 precisávamos de tudo o que nos falta agora: movimentos sociais fortes e articulados e uma esquerda disposta, por exemplo, a voltar às ruas e ir além de uma frente ampla que se contenta, e quer nos convencer, que bastam as eleições para “derrotar o fascismo”.

Não é preciso conhecer alta gastronomia para reconhecer que lula com chuchu está longe de ser uma iguaria, mesmo que a exótica combinação sirva, momentaneamente, para matar a fome de quem precisa.

Uma das razões para a fragilidade de nossa democracia é que ela foi construída sob os signos da conciliação e da anistia com os criminosos e os crimes do nosso passado recente. Elas ajudaram a sedimentar nossa indiferença à barbárie e nossa alta tolerância para com a violência e o terror do Estado que são as bases do bolsonarismo.

Reconstruir não apenas a democracia, mas o país depois de quatro anos de tragédia e devastação, passa necessariamente por não repetir os erros pretéritos e ter a coragem de recusar a conciliação e a anistia com os criminosos e os crimes de agora.

Sejamos honestos, nenhuma candidatura reúne as condições para tanto. E talvez nenhuma delas esteja de fato disposta a isso. Será uma boa notícia se efetivamente elegermos quem reconheça a indecência de milhões de brasileiras e brasileiros se alimentando de restos. Mas nossa miséria está longe de ter um fim.

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