Em busca do miolo perdido: uma história quase literária

Todo escritor pensa demais, numa mistura de memória e devaneio. Tais características fazem parte da minha vida pós- AVC. Devido a esta tragédia, perdi parte da memória e entro em constantes fluxos de consciência. Faz parte da minha vida buscando o que perdi: meus miolos

Tem coisa que a gente só aprende vivendo… Ou morrendo. Foi a morte que me apresentou uma nova forma de viver, ou quase isso. As pessoas tendem a temer a morte porque acham que ela é o contrário da vida. Ledo engano. Ela é uma parte dela, quem sabe maior. Eu sei disso porque eu já morri e voltei. E, nisso, tive a sensação de que aquilo que chamamos de vida é apenas um pedacinho do infinito em que é constituída a morte.

Quando morri, eu me expandi, e tudo o que eu chamava vida era muito restrito à imensidão de tudo. Costumo dizer que viver é um punhado de pó de café fechadinho em um recipiente. Quando a gente morre, esse café é jogado num oceano. Expande-se. Quando uma pessoa morre, ela pode ir aonde quiser: para casa, para um estado ou país distante. Tudo é possível se você se concentrar e saber aonde quer chegar. Assim, como na literatura.

Não saí ilesa dessa aventura. Voltei com o cérebro machucado, especificamente faltando um pedaço dele. Algo muito comum em acidentes vasculares cerebrais. Falo no plural mesmo, porque tive três. Esta é a minha história. Comecei a escrever “para valer” depois de morrer, sem ser um Brás Cubas da vida, ou da morte.

Quando eu voltei, não sabia mais escrever. Na verdade, nem sabia que usava óculos. As palavras saíam bem embaralhadas, tanto na fala como na escrita. Não tive a terrível afasia, mas uma lesão cognitiva do caos em que misturava francês com o português. Francês era o meu segundo idioma e, tal como Sartre, me acompanhou nos dias mais nauseantes.

No começo, só me sentia bem escutando e escrevendo frases em francês. O português (o que hoje costumo nomear de “a língua de vocês’) não me vinha. Durante as tardes tentava me conectar com a minha língua materna, e à noite chorava de solidão, porque tinha me tornado estrangeira em meu país.

Foi desesperador, principalmente porque sempre ganhei o meu pão de cada dia escrevendo textos técnicos para empresas de ensino a distância. Nada glamouroso, mas o suficiente para me manter. Então, o meu plano era voltar a escrever o bastante para retornar ao mercado de trabalho e me sustentar. Somente isso. Somente tudo isso, para um cérebro com miolos incompletos.

Na minha primeira vida gostava muito de ler, quase uma obsessão, tanto que me formei em Letras. Então, minha estratégia para me reencontrar com as palavras partiu da minha própria biblioteca pessoal, especificamente com “Carnaval”, de Manoel Bandeira. A escolha foi proposital porque eu sabia a maioria dos poemas de cor, e estava num momento em que realmente queria ir embora para Pasárgada. Abria o livro e copiava letra por letra num caderno de caligrafia. Só copiava mesmo, sem entender o contexto, sem decodificar as palavras. Mas, quando identificava um determinado poema, ficava tão feliz que o declamava (quem sabe em português exato). Foi assim que voltei a ler bem, ou quase isso.

Para escrever foi mais difícil. Meu vocabulário era restrito, o que fazia com que frases complexas fossem impossíveis de serem compreendidas. “Na minha língua” elas eram aglutinadas com francês, espanhol e alemão. Como estudava muitas línguas, quatro delas se misturaram na minha cabeça, de modo que nada ficava perfeitamente legível. Uma sopa de letrinhas.

Além de Manuel Bandeira, a literatura me proporcionou outro excelente professor: João Guimarães Rosa. Exatamente aquele escritor que todo mundo diz que leu, mas poucos terminam um livro justamente pela complexidade de sua escrita. Guimarães Rosa gosta de coloquialismo e neologismo, de formar novas palavras misturando termos estrangeiros. Assim, ele me mostrou que, mesmo com o meu distúrbio cognitivo, eu poderia me expressar, e como eu precisava disso: desabafar o que estava sentindo! Assim, de supetão, sem linha, sem parágrafo, sem pontuação. Foi assim que encontrei as veredas do meu grande sertão. Foi assim que me descobri Diadorim: “que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo”.

Muita gente não sabe, mas comecei a escrever nos grupos de apoio de AVC: só para sobreviventes. Lá não iriam me julgar pela falta de modos gramaticais, tampouco pelos meus devaneios. Lá ninguém iria ter dó de mim. E apesar de tudo isso ser pouco, para alguém que teve uma lesão cerebral era muito. O olhar de piedade é a pior coisa do mundo. Acredite, eu sei.

Nos grupos, toda palavra é livre, e para minha surpresa, meus parágrafos foram muito bem recebidos, mesmo sem muita morfologia e sintaxe. Lá, eles entendiam o que eu estava escrevendo porque era tudo descrição do que eu estava passando, e eles também. Muitos sobreviventes de AVC nunca tiveram contato com literatura clássica, mas todos compreenderiam um “Sagarana” e uma “Ilíada”. Todos eles estão em busca de respostas e enfrentando uma guerra interna ao mesmo tempo. Todos estão à flor da pele.

Hoje há muito glamour em torno da arte literária. Ela é vista como a comunicação de intelectuais de gravata borboleta e de bêbados incompreendidos. Opostos que se atraem nas linhas digitalizadas. Todo esse subterfúgio nos faz esquecer que a literatura é feita de reflexões sobre a vida e de histórias quase sempre inacabáveis. Ela se entrelaça muito bem com os sentimentos que a gente tem depois de sofrer um AVC. Não precisa de ortografia perfeita e todos os “pingos nos is”. Não existe todo esse controle na vida, tampouco na arte, que a meu ver, é um reflexo dela. Parnasianistas que me xinguem. Não me importo.

Hoje escrevo para sobreviventes de AVC porque minha segunda vida está entrelaçada a das deles. Tem coisa que só quem teve tal experiência entende. Coisas sem explicação. Coisas de quem perdeu o controle da vida em um segundo, e sobrevive todos os dias enfrentando dores inimagináveis. Porque a dor faz parte da vida e a arte de viver é aprender a lidar com ela.

No princípio, os conteúdos partiam de mim. Agora também relatam a experiências deles, porque me expandindo na morte, aprendi que também podemos nos expandir na vida. Podemos coisas impossíveis e inimagináveis. Basta não desistir, e aprender com as vitórias e derrotas de cada processo, por mais doloroso que ele seja.

Cada texto é único porque ele reflete uma vida toda ressignificada em sua individualidade, até na minha. Na função de contadora de histórias, me tornei cronista. Como estudei teoria literária, claramente uso isso a meu favor. Digamos que esporadicamente passeio pelos bosques da ficção, mas que também permito reinventar um novo estilo nas estruturas e nas palavras. Faz parte do meu desmiolo.

A técnica utilizada não importa, o importante é que o público-alvo entenda. Peço perdão aos desavisados, mas o foco de meu trabalho é extremamente voltado aos AVCistas e pessoas com deficiência. Não se trata de inclusão, mas de preferência. Pelo menos nas minhas crônicas, o público sem deficiência é minoria. Até me surpreendo por pessoas fora da bolha me apreciarem tanto.

Falar sobre uma doença ou um acidente que mudou tanto a vida de uma pessoa pode parecer inovador ou delicado. Não o é. Na verdade, a base de tudo é o descontrole. Como agimos diante das intercorrências da vida. Todo AVCista lida com dores e notícias tristes diariamente. Todo sobrevivente acorda desesperado porque se sente à beira do precipício de suas sequelas. Não tem como romantizar uma vida assim, bem como é um tanto quanto piegas romantizar qualquer outra vida. A única diferença entre os sãos e os doentes, é que nós compreendemos que não há como consertar um infortúnio, mas dá para adaptar-se a ele. É essa a nossa história, e de muitos outros. Sou apenas a narradora.

Obs: Este texto foi escrito e publicado originalmente para o livro “Provocações” (2023), da Editora Kotter.

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