Dicas de sobrevivente

De acordo com a psicologia existem cinco estágios do luto, que devem ser vivenciados para, então, serem superados: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação

Sobreviver deixa a gente esquisito, num frenesi. Ficamos confusos, perdemos o rumo, queremos que tudo volte a ser como era antes e nos cobramos intensamente. Se identificou com essas características? Talvez seja porque você também é um sobrevivente… De uma pandemia.

E aí, como está se sentindo após o Natal de 2021? Estranho, ansioso, um pouco deprimido? É assim que a gente se sente depois de passarmos por um evento marcante, perturbador. Bah, mas foi apenas um Natal, você pode me dizer. Não, não foi apenas uma celebração em si, mas uma festa realizada no segundo ano de uma pandemia, no meio de uma crise política econômica e social. Sim, estamos no meio de um furacão, e você provavelmente está tentando dar conta disso tudo, ou seja, administrar o caos. E, assim como todo sobrevivente, está vivendo a crise que nós AVCistas passamos quando temos que lidar com o pós-acidente: o luto.

Apesar dos pesares, a maioria de nós, sempre fomos muito abençoados em relações às crises: não fomos acostumados com deslizes econômicos, guerras e crises sanitárias. Muitas dessas complicações aconteceram somente com as nossas gerações passadas, o que, de certo modo, nos deixou despreparados para a pandemia ocorrida nessa temporada e para as consequências dela. Talvez por isso tanto desespero em lidar com limitações. Entendo completamente, também lido com isso.

De acordo com a psicologia existem cinco estágios do luto, que devem ser vivenciados para, então, serem superados: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação. À primeira vista, parece meio clichê, mas garanto que vale a pena analisar um a um.

A primeira coisa quando algo ruim acontece é a gente negar, faz parte do nosso mecanismo de proteção. Quando surgiu a ideia de trabalharmos em casa por causa de uma pandemia, a gente achou meio ilógico, e assim que fomos mandados para casa, pensamos que essa nova rotina iria, no máximo, durar um mês. É claro que em alguns surgiu um desespero (houve quem fizesse estoque de produtos alimentícios e papéis higiênicos), mas no geral, a maioria se comportou de modo razoável, achando que o home-office era passageiro e tudo iria acabar bem. Então, logo depois que a gente sobrevive a um AVC, a gente pensa a mesma coisa, que apesar das evidências físicas e mentais de que a coisa é grave, tudo milagrosamente e rapidamente vai ficar bem. A gente procura negar todos os dados e se concentra na ideia de que em um mês, no máximo em dois, estará de volta ao trabalho, fazendo compras na feira e limpando a casa. É por isso que estamos aparentemente tão felizes e otimistas no hospital: na verdade, estamos negando tudo o que aconteceu conosco. O poder da negação tem o mesmo modus operandi em todos: ninguém acredita que sua rotina, de uma hora para outra, virou de de cabeça para baixo.

O segundo estágio é o da raiva. Ficar preso em casa, sem poder sair, fazer o que se gosta e deixar de ver os amigos é frustrante. Não há coisa pior do que se sentir limitado, ter suas vontades podadas. A gente sente isso quando se tem sede e fica impossibilitado de beber água, simplesmente porque o braço não obedece mais ao comando do cérebro o suficiente para pegar o copo e levá-lo até a boca, ou de não poder se levantar nem para ir até o banheiro. O simples fica complicado. O ir e o vir ficam impossibilitados. Tem hora que a gente não aguenta e explode, afinal, tudo isso é muito injusto e não estamos acostumados. Quem não ficaria impaciente diante de uma situação tão desafiadora?

De repente, a crise econômica se acentua e você recebe aquele e-mail do trabalho solicitando uma reunião presencial. Assim, seu desligamento da empresa foi concluído e agora você é mais um dos desempregados da pandemia. Para evitar cair no desespero, você procura pensar no lado bom da coisa: de que agora poderá investir o dinheiro da rescisão no seu lar e o tempo disponível para ficar com os seus filhos, já que as crianças estão enlouquecendo em casa. E assim, chegamos no estágio da barganha: o mais ilógico de todos. Por incrível que pareça, a gente também chega nele. Pensamos que o AVC aconteceu porque pegamos pesado demais no trabalho, no descaso com a saúde, nos problemas familiares, ou seja, exageramos no tom, e agora, que tivemos esse desastre mental, teremos a chance de nos refazer e colocar tudo em ordem, quase como se fosse um conto de fadas.  Só que em ambos os casos, a situação real vai bem mais além do que isso, não é mesmo? E toda essa negociação nada passa de uma ilusão de controle, que nenhum de nós temos.

Os meses passam, as coisas pouco mudam e vem aquela sensação de erro, de fracasso, de “comigo é bem pior”. E mesmo com as notícias alarmantes, a tendência é apenas se concentrar na grama mais verde do vizinho ou daquela pessoa sorridente e ilusoriamente capaz, de tal rede social: o que é praticamente um reforço para o desânimo. Para nós, AVCistas, essa sensação de rejeição é bem forte, nos sentimos incapazes e pequenos diante de tantos desafios, de tantas dores e incompreensões: o próprio cocô do cavalo do bandido. Com certeza lidar com a depressão é uma das fases mais doloridas de um luto.

E, por último, vem o “aceita que dói menos”, que basicamente consiste em recolher os copos sujos depois da festa. Nesta fase, já estamos cansados. Com certeza, agora infelizmente você já se acostumou a comprar os produtos mais baratos no supermercado e está trabalhando recebendo um salário menor. Sim, é a situação do momento. Eu, por exemplo, já me acostumei a fazer exames dolorosos e com os olhares das pessoas ao saberem do meu histórico de saúde. Aceitar é não se angustiar tanto com os pesares da vida, mas não significa desistir de lutar, seja por um emprego melhor, por estabilidade emocional ou por uma reabilitação. É respirar, pegar um fôlego para continuar lutando pelo que se deseja e seguir em frente.

Agora que você já entendeu que estamos no mesmo barco, vou te dar umas dicas importantes para seguir viagem. A primeira delas é que, na vida de sobrevivente, o lema é um dia de cada vez, ou seja, é preciso saber separar expectativa de realidade. Provavelmente as coisas vão demorar um tempo maior do que você quer para se ajeitarem, e enquanto isso, você vai precisar continuar levantando todo dia da cama e seguindo a sua rotina. Também é necessário entender que pequenas evoluções fazem grandes diferenças. Por isso, dê valor ao pouco conquistado, porque ele é sim, muito valioso. Também procure fixar na sua evolução pessoal, não na dos outros, porque, nesse momento, é só o seu caminho que importa (Isso não é egoísmo, é foco!). E por último, uma das coisas mais importantes que aprendi com essa minha experiência tão desmiolada: maneire na autocobrança. É óbvio que estamos fazendo o máximo que podemos. Todos nós, sem exceção. Escutar a cantora Simone na época de fim de ano só serve para ficar de baixo-astral. Não leve a lição de moral dessa letra tão a sério. (Com certeza quando ela gravou essa música nunca imaginaria que iria assombrar a nossa geração desse jeito). Ah, e tente aproveitar o momento em vez de se sobrecarregar, pois a vida é feita de memórias, não de prazos. É isso que a gente pensa quando se depara com a morte. E realmente o que faz com que a vida valha a pena é o tempo em que passamos com quem amamos. Você está vivo, poxa, e isso faz toda a diferença. Feliz Natal!

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