Cem por cento

Nunca fui atropelada, mas era essa a sensação que tinha quando olhava para meu corpo pós-acidente

Todo sobrevivente de AVC quer se recuperar 100%; ser o mesmo de antes. Eu também queria, até perceber que não era a mesma pessoa, por dentro e por fora. Lutar para voltar no tempo seria apenas um retrocesso.

Voltar a ser como antes. Era só nisso que eu pensava quando voltei para casa após a minha alta hospitalar. Era como se o AVC tivesse sido um baita tropeço, um ponto fora da curva da estrada da minha vida. Sabe esses deslizes que a gente comete, mas que podem ser consertados com uma conversa honesta e um bom pedido de desculpas? Então, era assim que relacionava minha recuperação neurológica: difícil, mas totalmente alcançável. Eu ria voltar atrás, consertar cada um dos meus passos até me estabelecer na mesma condição que tinha antes da lesão. Subestimei completamente meu acidente vascular cerebral.

Nunca fui atropelada, mas era essa a sensação que tinha quando olhava para meu corpo pós-acidente. Sim, ele estava muito machucado. Não, eu não poderia ficar “daquele jeito” para sempre. Lutaria bravamente para me recuperar cem por cento. Essa porcentagem maluca é uma das coisas que mais atormentam a vida de um AVCista, pois ela só causa grandes frustrações diante da nossa realidade.

Também pudera, quando acordamos nos sentimos os mesmos por dentro, e os primeiros meses são cheios de evoluções devido ao período áureo da neuroplasticidade (que é quando o neurônio vizinho assume a função do que foi destruído). Então, a gente tem a falsa sensação de que vamos ser os mesmos de antes, e que a lesão cerebral não passou de um grande susto. Mas, não é bem assim que as coisas acontecem na prática. Quando sofremos uma lesão cerebral, perdemos parte dos nossos neurônios, e alguns (assim como eu) perdem até parte da massa encefálica. Esses pedaços nunca mais se recuperam, estarão para sempre lesionados.

Então, enganada pelos primeiros progressos da neuroplasticidade, determinei que voltaria ao trabalho em menos de três meses, já que conseguia ficar em pé por alguns instantes. Hoje percebo como fui iludida. Nos meses seguintes, a recuperação estacionou e entrei em desespero, pois me dei conta de que não voltaria a ser exatamente como antes. Até que em um dos grupos de apoio me deparei com a informação de que havia me tornado uma Pessoa Com Deficiência (PCD), e como a constatação disso me rasgou por dentro.

Essa dor em grande parte veio da minha ignorância e capacitismo, pois achava que se admitisse essa nova condição, nunca mais iria melhorar. E progredir cognitivamente e fisicamente, para mim, era sinônimo de ter a minha vida de volta. Só depois de pesquisar muito, a ficha caiu e entendi que, independentemente de qualquer designação, continuar minhas terapias iria melhorar a minha qualidade de vida até o ponto de reconquistar a minha independência. Porém, nada seria como antes depois de um AVC. Aquele cem por cento, para mim, seria inalcançável.

Também compreendi que ter adquirido uma deficiência não significava que eu não pudesse trabalhar, namorar, viajar e continuar a ter ideias mirabolantes. Era só uma característica a mais, e ponto. Só que ninguém quer ser diferente, né? A gente quer ser como todo mundo, porque ser igual significa ser benquisto e aceito. E o meu novo jeito de ser era bem diferente dos perfis das pessoas nas redes sociais, e do meu próprio perfil de antes do acidente: estava meio careca, esquálida, com braço e a perna encurvada e com a fala estranha.

Só comecei a me aceitar quando reparei que todo mundo (tendo ou não passado por um AVC) tem algo muito diferente, e que isso não era o fim do mundo. Ninguém é como a bailarina da ciranda do Chico Buarque. As pessoas envelhecem, se machucam e se transformam constantemente, querendo isso ou não. Ninguém é cem por cento. Todo mundo muda em decorrência de sua história.

Hoje vejo um sobrevivente de AVC com muita admiração, talvez porque eu tenha ideia do processo percorrido para cada característica dele, e tudo isso refletir na minha experiência. Por exemplo: acho cada pausa emitida em um discurso de um afásico muito especial, porque sei que durante esses microssegundos, milhões de informações estão sendo reviradas e selecionadas naquela mente esforçada, e que cada palavra dita é resultado de um imenso trabalho. Cada palavra dita por um afásico é a sua vitória.

Aceitar-se após o AVC é extremamente difícil, porque o corpo, a rotina e as expectativas mudam drasticamente. Porém, o único jeito de lidar com a realidade é ter consciência de como estamos no mundo e valorizar tudo aquilo que temos de bom, e não o contrário. A palavra “aceitação” não significa resignar-se, muito pelo contrário, é entender como e por onde lutar para chegar aonde se quer. Tem mais a ver com olhar as situações por outra perspectiva do que fechar os olhos.

Sobreviver aos AVCs (e ao pós-AVCs) me mostrou um poder que desconhecia, principalmente porque, ao lidar com o meu novo corpo, comecei a ver eu mesma e o mundo de modo diferente.  Isso começou quando me deparei com o medo e o despreparo de pessoas que tanto admirava, ao sentir elas se distanciarem de mim logo após meu retorno em suas vidas. Hoje não as admiro tanto, esse sentimento voltou-se para os sobreviventes de AVC, suas cicatrizes refletem as minhas.

Antes dos meus acidentes, eu era loira, relativamente magra e vivia correndo de lá para cá em busca de inúmeras conquistas para atingir os meus objetivos. Assim que voltei para casa, pedi para pintar o cabelo nos fiozinhos que sobraram. Queria ser a mesma de antes desesperadamente. Só que o contorno do meu escalpo não era o mesmo, estava cheio de cicatrizes e afundamentos. E então entendi que me forçar a ser como antes do AVC era um caminho inútil, porque nem por dentro era a mesma pessoa. Tudo havia mudado e passei a sentir tudo mais forte. Também não tinha como me apressar, nem no andar e muito menos na mente. Tudo necessitava de árduo processo de reaprendizado, em que eu era aluna e professora ao mesmo tempo.

Meses depois voltei a ser morena e tive que mudar o meu estilo de roupa, já que me faltava habilidade em me vestir, principalmente no elaborar de laços e no esticar das meias-calças. O tempo se tornou curto porque eu precisava descansar. Parei de beber nos fins de semana porque meus medicamentos não permitiam mais isso, assim como deixei de frequentar baladas, que se tornaram uma proposta impossível para quem lida com a epilepsia. Tudo precisou ser mais calmo e todas as forças que me restaram precisavam ser bem direcionadas. Escolhas foram necessárias.

Se antes eu via o antes do AVC com nostalgia, agora sinto que apenas estou em uma outra fase da vida, ou melhor dizendo, estou em minha segunda vida. Hoje, entendo melhor os fins de ciclos e as perdas e, diante deles, conforto o meu medo diariamente. Não penso em trocar a minha vida pela que tinha, não porque não quero, mas porque essa ideia é impossível. Ninguém volta ao passado, é só para frente que a gente anda, melhor dizendo: marcha. Nenhuma cicatriz pode ser totalmente removida (nem com plástica), porque ela reflete algo que foi cortado por dentro. E por dentro tudo é mutável e ao mesmo tempo para sempre. Hoje sou quem sempre fui: curiosa, extrovertida e amável e, ao mesmo tempo, sou o que me tornei: escritora, sobrevivente de AVC e oficialmente desmiolada. Cinquenta por cento lá e cinquenta por cento cá. Do meu jeito, inteira!

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